Título: Papa ataca descriminalização do aborto
Autor: Junqueira, Caio e Ulhôa, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 10/05/2007, Especial, p. A16

A polêmica começou antes mesmo de o avião da Alitalia que trouxe o papa Bento XVI aterrissar no aeroporto de Guarulhos (SP), às 16h02, 28 minutos antes do horário previsto. Questionado por jornalistas que o acompanharam a bordo desde Roma, se apoiava proposta de líderes eclesiásticos mexicanos de excomungar parlamentares mexicanos que descriminalizaram o aborto na Cidade do México, Bento XVI respondeu: "Sim, esta excomunhão não seria arbitrária, mas sim permitida pela lei canônica, que diz que matar uma criança inocente é incompatível com receber a comunhão, que é receber o corpo de Cristo. Eles (eclesiásticos mexicanos) não fizeram nada de novo, surpreendente ou arbitrário. Eles simplesmente anunciaram publicamente o que está contido na lei da Igreja, que expressa nossa apreciação pela vida e que a individualidade humana, a personalidade humana estão presentes desde o primeiro momento".

Os jornalistas que estavam a bordo, responsáveis pela cobertura do Vaticano, consideraram que esta foi a primeira vez que Joseph Ratzinger tratou tão abertamente da descriminalização do aborto. Decidiu fazê-lo a caminho de um país em que o ministro da Saúde, José Temporão, defende que o tema seja tirado do campo da moral para tratá-lo como uma questão de saúde pública, no que é apoiado pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

Ao saudá-lo, no aeroporto de Guarulhos, sem beijar-lhe o anel, Lula foi diplomático realçando os pontos que os une como o "apoio firme e entusiasmado do Vaticano à ação global contra a fome e à pobreza, iniciativa que tem empolgado no mundo líderes e representantes da sociedade civil e possibilitando avanços em defesa dos povos oprimidos e marginalizados".

O presidente elogiou a doutrina social da Igreja - "Sabemos que estará ao lado dos deserdados do mundo, dos mais frágeis e vulneráveis" - e ao entrar na questão de valores o fez buscando ressaltar proximidades entre os brasileiros e a doutrina católica. "A Igreja católica é portadora de valores que permeiam a sociedade brasileira", disse Lula ao ressaltar a importância de se "resgatar e fortalecer a vida familiar". No momento mais incisivo de seu discurso, disse a Bento XVI: "Esteja seguro de que compartilhamos o desejo de favorecer a vida familiar".

Ao discursar, em seguida, num português claro, o papa confirmou o que antecipara no avião. Não deixou dúvidas de que defenderia, durante os cinco dias de sua visita ao Brasil, as posições da Igreja em questões como o aborto e a eutanásia. "Sei que a alma deste povo, bem como de toda a América Latina, conserva valores radicalmente cristãos que jamais serão cancelados. E estou certo de que em Aparecida, durante a Conferência Geral do Episcopado, será reforçada tal identidade, ao promover o respeito pela vida, desde a concepção até seu natural declínio, como exigência da própria natureza humana".

O papa não deixou de contemplar no discurso a defesa da atuação social da Igreja - "A (conferência) fará também da promoção da pessoa humana o eixo da solidariedade, especialmente com os pobres e desamparados" - mas o tema da família foi o eixo de seu pronunciamento inaugural. Procurou dissociar os valores do catolicismo de imposições do episcopado: "A Igreja quer apenas indicar os valores morais de cada situação e formar os cidadãos para que possam decidir consciente e livremente; neste sentido, não deixará de insistir no empenho que deverá ser dado para assegurar o fortalecimento da família como célula-mãe da sociedade; da juventude, cuja formação constitui um fator decisivo para o futuro de uma nação e, finalmente, mas não por último, defendendo e promovendo os valores subjacentes em todos os segmentos da sociedade, especialmente os povos indígenas".

De Guarulhos, o papa seguiu de helicóptero para o aeroporto do Campo de Marte, na zona norte de São Paulo, onde embarcou no papamóvel num percurso de 20 minutos até o mosteiro de São Bento, centro da cidade. De lá, numa cabine blindada, fez uma breve saudação aos fiéis (ver reportagem abaixo).

Em Brasília, o ministro José Gomes Temporão e os parlamentares reagiram às suas declarações no avião e ao seu pronunciamento de chegada. "Você não pode querer prescrever dogmas e preceitos de uma determinada religião para o conjunto da sociedade. Me parece que isso é uma coisa descabida", disse o ministro da Saúde no Senado, onde participava de uma audiência pública.

Dizendo ter "sólida formação católica", o ministro não quis comentar diretamente o apoio do papa à proposta de excomunhão de políticos favoráveis à descriminalização do aborto, mas deixou clara sua posição: "A fé não pode ser excomungada. Cada um professa a sua, sem nenhum problema. No Brasil, Estado e Igreja se separaram há séculos. Acho que uma questão é que cada um possa se manifestar livremente sobre suas crenças, filosofias e opiniões".

Em entrevista, o ministro cobrou um posicionamento mais ativo das mulheres na discussão da legalização ou não do aborto no país. Segundo seu diagnóstico, há um 'viés machista' no debate, já que é dos homens que partem as manifestações contrárias mais contundentes. Citou o caso da passeata anti-aborto da terça-feira e na qual a maioria dos participantes era de homens. "Se os homens engravidassem tenho certeza de que essa questão teria sido resolvida há muito tempo", disse. "Tem um viés machista nesta discussão. As mulheres precisam falar e ser ouvidas sobre como vêem esse processo. Nessa questão, as mulheres sofrem e, na maioria das vezes, se vêem sozinhas num momento como esse. Mas as leis, as normas e o julgamento são feitos por homens", completou.

O ministro defendeu ainda que o aborto seja tratado como uma questão de saúde pública grave que "provoca morte, sofrimento e dor a milhares de mulheres" submetidas a procedimentos inadequados. "As discussões no campo da filosofia, da ética, da religião e da moral são legítimas, mas o ministro da Saúde tem que estar focado na dimensão da saúde pública". Casado e pai de quatro filhos, Temporão disse não ter posição pessoal sobre o tema. "A minha posição o tempo todo é tirar a discussão do campo da filosofia, da abstração e dos fundamentalismos e trazer para o campo da dor, da morte e do sofrimento", afirmou.

Temporão citou dados para mostrar a gravidade da situação: 160 mulheres mortas no ano passado por complicações de abortos mal-realizados e 250 mil mulheres atendidas pelo Sistema Único de Saúde por ano, por problemas resultantes de abortos. O ministro disse uma instituição americana calcula a existência de 1,1 milhão de abortos clandestinos no país, ele "multiplicaria pelo menos por cinco esse número".

Na Câmara, os parlamentares reagiram com desconforto ao apoio dado pelo papa à excomunhão de políticos favoráveis à descriminalização do aborto. O vice-líder do DEM Antonio Carlos Magalhães (BA), devoto de Santo Antonio, disse que Bento XVI havia extrapolado. "É um exagero. Eu sou contra o aborto, mas respeito a tese e a opinião de quem é favorável", disse. "Não se pode diminuir a fé de quem é favorável ao aborto. Sou muito cético, acho que esse debate não vai adiante, mas, não acho que a discussão deva ser interrompida", completou.

O líder do PSOL, deputado Chico Alencar (RJ), católico, faz uma análise da excomunhão. "No período colonial, excomungava-se quem fumava. Quando soube da vinda do papa ao Brasil, pensei que ele fosse falar de coisas mais sérias, como a pobreza e a miséria na América Latina. Essa pauta (aborto) é artificial", disse o parlamentar. "O papa parece ter vindo para punir e vigiar. Pensei que ele tivesse vindo para abençoar. Não se pode vedar a discussão do aborto. E ficar apenas no contra ou a favor é muito pouco. O assunto é muito mais sério", completou.

Até o deputado Otávio Leite (PSDB-RJ), autor do projeto que prevê a criação do dia do Frei Galvão, também não concorda com a excomunhão, embora de forma menos incisiva do que os colegas. "Se a diretriz da Igreja é nesse sentido, embora eu a considere por demais severa, eu compreendo", disse. Mas fez um apelo: "A questão do aborto é de natureza interior de cada um".

A deputada Manuela Ávila (PCdoB-RS) lamentou que a visita do papa seja pautada pela questão. "Ele viria fazer uma visita religiosa e não política. Se for excomungar deputados que votarem favoravelmente ao aborto, temos de excomungar quem não obedece outras determinações da Igreja, como a contracepção". O líder da minoria, Júlio Redecker (PSDB-RS), luterano, também reagiu às declarações de Ratzinger: "Tenho o maior respeito pelo papa. Mas acho que a Igreja tem que ser a Igreja do perdão, da inclusão. O papa poderia se preocupar com os milhões de desvalidos da América Latina, que é uma questão muito maior do que ser favorável ou contrário ao aborto". O líder do governo, José Múcio Monteiro foi econômico: "É uma questão de consciência. Não se discute nesses termos".