Título: Barbosa: juiz, promotor, sociólogo
Autor: Couto, Cláudio Gonçalves
Fonte: Valor Econômico, 05/03/2013, Política, p. A6

Como era de se esperar, a gestão de Joaquim Barbosa à frente do Supremo Tribunal Federal já provoca fortes emoções. Numa entrevista coletiva dada a correspondentes internacionais na semana passada, o presidente de nossa Corte suprema despiu-se de sua posição institucional e assumiu as vezes de um misto de promotor, legislador e sociólogo das profissões.

A primeira dessas personas é a original do ministro. Oriundo do Ministério Público, ele já se comportara como um promotor no papel de relator da Ação Penal 470, referente ao famigerado mensalão. Foi o desempenho desse personagem à la Danton que lhe rendeu prestígio público, tornando-o um herói popular de muitos cidadãos indignados, da opinião pública antipetista e de oposicionistas em geral, na mídia ou nos partidos.

Num país marcado pela crônica impunidade dos poderosos, o estilo vigoroso e agressivo de Barbosa (reforçado pelo conveniente contraponto de Ricardo Lewandowski, frágil e vacilante), foi como um bálsamo purificante para os temerosos de que se assasse uma nova pizza. Claro que para isto foi fundamental o sucesso da acusação, com a confirmação da maior parte dos votos do relator. Daí foi um passo a ele se tornar um nome aventado como possível candidato à Presidência da República, constante inclusive das enquetes.

As declarações de Barbosa revelam a sua origem no MP

Não há como separar o ganho de popularidade de Barbosa de sua atuação como acusador, embora juiz - ou talvez por isto mesmo. Um juiz-acusador é o que esperam aqueles que, cansados de uma rotineira impunidade (como no raciocínio de que a polícia prende, o juiz solta), aceitariam até mesmo um linchamento como solução razoável, senão desejável.

Por outro lado, note-se que, num órgão como o STF, a presença de indivíduos que não são juízes de carreira pode representar algo muito saudável para a democracia. Rompe na cúpula com um corporativismo que tornaria o Judiciário ainda mais fechado à sociedade do que ele já é. Isso ficou evidenciado quando, alguns meses antes do julgamento da ação penal 470, na decisão que definiu o alcance das competências do Conselho Nacional de Justiça, a manutenção de seu papel profilático ocorreu graças ao voto daqueles ministros oriundos de fora da magistratura - dentre eles Joaquim Barbosa, o promotor.

Em sua entrevista, o presidente do Supremo notou que "nosso sistema penal é muito frouxo. É um sistema totalmente pró-réu, pró-criminalidade". Essa é uma fala que pode ser interpretada como a de um legislador insatisfeito com as leis vigentes e, portanto, que opera para promover sua mudança. Mas também pode ser vista como a de um promotor desacorçoado, que se sente impotente em seu labor de acusar e obter duras punições para os criminosos, pois vê penas brandas e normas processuais favoráveis a meliantes.

Se tivesse se mantido apenas como um legislador-promotor, o juiz Barbosa não teria causado grande alvoroço. Entretanto, ele também se manifestou como sociólogo das profissões, observando algo que me parece irretorquível sobre as carreiras e as mentalidades de magistrados e membros do Ministério Público, respectivamente: "As carreiras de um juiz ou de um procurador ou promotor de Justiça, são muito próximas. Os concursos são os mesmos, a remuneração é a mesma, o pessoal quase todo sai das mesmas escolas. Uma vez que se ingresse em uma dessas carreiras, as mentalidades são absolutamente díspares. Uma é mais conservadora, pró status quo, pró impunidade. E a outra rebelde, contra status quo, com pouquíssimas exceções."

De fato, o ambiente organizacional tende a moldar mentalidades e condutas. Até pelo papel institucional que cada um desempenha, é de se esperar que juízes e promotores fiquem diferentes ao longo do tempo. Mas também é de se esperar que as duas carreiras atraiam pessoas de perfil distinto - os futuros juízes, mais parcimoniosos; os futuros promotores, mais assertivos.

As associações de magistrados não gostaram nada da análise de Joaquim Barbosa. A Associação dos Magistrados Brasileiros, a Associação dos Juízes Federais do Brasil e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho se pronunciaram por meio de uma dura nota contra as observações sociológicas do presidente do STF. Segundo elas, "a comparação entre as carreiras da magistratura e do Ministério Público, no que toca à "mentalidade", é absolutamente incabível, considerando-se que o Ministério Público é parte no processo penal, encarregado da acusação, enquanto a magistratura - que não tem compromisso com a acusação nem com a defesa - tem a missão constitucional de ser imparcial, garantindo o processo penal justo".

Como diria o sábio, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Na pior tradição do pensamento jurídico bitolado, a nota das associações deriva o "ser" social do "dever ser" legal. Ora, não é porque a Constituição define as funções institucionais de promotores e juízes que esses deixarão de desenvolver mentalidades peculiares ao seu grupo. Fosse assim, não existiriam crimes, pois a lei não permite.

Claro que a enunciação de uma tolice como essa não é decorrência apenas de estreiteza intelectual. Primeiramente, tenta-se desabonar o presidente da Corte - pouco receptivo às demandas estritamente corporativistas que são a razão de viver das três associações. Em segundo lugar, busca-se armar nova barricada contra o CNJ - um anátema para essas entidades de classe, como ficou claro pela invectiva que fizeram contra o órgão, a cuja derrota me referi alguns parágrafos acima. Essas intenções são evidenciadas nas passagens finais da nota que emitiram.

Este embate deixa clara uma vez mais a importância de que a composição das cortes superiores passe por um escrutínio politico e conte com a possibilidade de serem nomeadas pessoas de fora da corporação judiciária. Fossem esses tribunais capturados exclusivamente por ela, certamente teríamos um poder ainda mais encastelado e insensível à moralidade pública do que é o Congresso Nacional, que tantos desgostos nos causa. E olhem que este ainda depende do voto popular.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP e colunista convidado do "Valor". Raymundo Costa volta a escrever no fim do mês