Título: No jogo dos carros, governo do Rio quer o segundo lugar
Autor: Olmos, Marli
Fonte: Valor Econômico, 05/03/2013, Especial, p. A16

Terreno onde será construída a fábrica da Nissan, em Resende: 3 milhões de metros quadrados, ou 20 estádios do Maracanã

Quem passa pelo Vale do Paraíba - região rasgada pelo Rio Paraíba e a Via Dutra - mal percebe quando cruza a "fronteira" entre São Paulo e Rio de Janeiro. Apenas uma linha imaginária separa os Estados na região que se esparrama ao pé da Serra da Mantiqueira. Mas há um desequilíbrio entre os dois lados. Desde que a indústria automobilística decidiu se instalar no Brasil, na década de 50, o lado paulista se desenvolveu mais nesse setor. Nos anos 90, numa fase de descentralização, duas montadoras escolheram a região sul-fluminense. Mesmo assim, o Rio continuou distante de merecer o título de polo automotivo. Agora, porém, a construção de fábricas e a ampliação das existentes criam condições para o lado fluminense finalmente virar o jogo.

O secretário de Desenvolvimento Econômico do Rio, Júlio Bueno, faz cálculos de quanto poderá chegar a produção anual de veículos em seu Estado: "Quatrocentos mil da Nissan, mais 300 mil da PSA (Peugeot e Citroën) e mais 140 mil da MAN." Ainda exagerada, a soma de 840 mil unidades permitiria ao Rio passar à frente de Minas Gerais, que produz quase 800 mil veículos por ano, o Paraná (com cerca de 650 mil), e quase encostaria nos quase 1 milhão de unidades do polo paulista do ABC. Em 2012 saíram de fábricas do Rio 147,8 mil veículos - 100 mil carros Peugeot e Citroën e 47,8 mil caminhões e ônibus da MAN.

Dados das montadoras indicam que com os novos projetos a capacidade de produção de veículos na região fluminense chegará perto de 450 mil unidades. Mas as contas de Bueno se baseiam em informações de investimentos futuros que provavelmente começaram a chegar ao seu gabinete.

A sede brasileira da Nissan acaba de ser transferida para o novíssimo edifício Porto Brasilis, que faz esquina com a avenida Rio Branco, onde fica a Secretaria de Desenvolvimento, no centro do Rio. "O que nos trouxe aqui [ao Rio] foi a fábrica", diz o presidente da empresa no Brasil, François Dossa. O empreendimento será inaugurado no primeiro semestre de 2014 e livrará a montadora japonesa da necessidade de importar carros do México. A mudança entusiasmou os funcionários. Dos 150 que trabalhavam na antiga sede, em Curitiba, 75% aceitaram a transferência para o centro do Rio.

Como incentivo fiscal, a Nissan tem permissão para financiar 75% do ICMS. O prazo para quitar a dívida é de 50 anos ou quando a soma do abatimento no imposto alcançar o valor investido na obra (R$ 2,6 bilhões). O mesmo foi oferecido para as obras de duplicação da capacidade na fábrica do grupo PSA Peugeot Citroën, que investirá R$ 3,7 bilhões até 2015.

Depois que recebeu a PSA, Porto Real, de 16,5 mil habitantes, passou a ter o segundo PIB per capita do Brasil

O terreno da Nissan - 3 milhões de metros quadrados, o equivalente a 20 estádios do Maracanã -, foi doado pelo governo estadual, que o comprou depois de a montadora escolher o local. Do lado municipal, serão dez anos de isenção de impostos como IPTU.

Do posto de serviços Graal Embaixador, no quilômetro 299 da Via Dutra, sentido Rio-São Paulo, tem-se a melhor vista da grandiosa obra da Nissan. Além das obras dos prédios onde funcionará a linha com capacidade anual inicial de 200 mil veículos, as máquinas fazem terraplenagem para cinco fabricantes de autopeças japoneses que marcarão estreia em solo brasileiro para abastecer a Nissan.

Próximo dali, na altura do quilômetro 296 da Dutra, também abre-se espaço para fabricantes de autopeças. O grupo PSA dedicará 650 mil metros quadrados para um novo grupo de fornecedores. De olho em ampliações futuras, a MAN também deslocará para uma área externa dois fornecedores que hoje operam dentro da linha da fábrica. E receberá um novo.

A alemã MAN e a francesa PSA Peugeot e Citroën são vizinhas, embora fiquem em cidades diferentes. A Volks Caminhões instalou-se em Resende em 1996 e foi comprada pela MAN em 2008. A notícia de que outra montadora também havia escolhido a região acelerou a emancipação de Porto Real, que até 1995 pertencia a Resende. Um acordo estabeleceu que ficaria para Porto Real o terreno onde a PSA construiria a fábrica, inaugurada em 2001.

A chegada da multinacional francesa alterou o perfil da economia da pequena Porto Real, até então concentrada na atividade rural. Com apenas 16,5 mil habitantes, a cidade tem o segundo maior PIB per capita do Brasil (R$ 215,5 mil). A prefeita Maria Aparecida da Costa Silva (PDT) atribui à empresa a "melhora na qualidade de vida da população" e aponta outra vantagem de contar com uma montadora. Somente para a frota usada pela PSA são licenciados anualmente na cidade 1,8 mil carros. O repasse do valor desse IPVA ajuda a engordar os cofres municipais.

Além dos fornecedores instalados no entorno das montadoras, outros também investem na região. É o caso da Michelin, com uma fábrica de pneus em Resende e outra, recentemente ampliada, na vizinha Itatiaia. À indústria automotiva se somam investimentos de outros setores de peso, como a divisão de máquinas pesadas da coreana Hyundai, que constrói uma fábrica em Itatiaia. Essa onda fez surgir até um apelido para a região: RIP (Resende, Itatiaia e Porto Real), em alusão ao trio de letras do ABC paulista.

A proximidade dos dois maiores mercados do país - Rio e São Paulo - e a conveniência de ter a Via Dutra quase na porta são os argumentos mais citados pelos executivos para apostar com força na região. Mas esses dois motivos já existiam em 1951, data da inauguração da Dutra. Foi, porém, no lado paulista do vale que a General Motors construiu uma fábrica, em São José dos Campos, em 1951. Anos mais tarde, em 1976, foi a vez de a Volkswagen se instalar em Taubaté. A fábrica da GM tem sido esvaziada pela própria montadora por causa de embates com o sindicato dos metalúrgicos local. Já a operação da Volks, que concentra a linha Gol, tem recebido sucessivos investimentos. Ambas já tinham fábricas no ABC quando se interessaram pelo vale do paraíba.

Mas por que só agora, quase 60 anos depois do início da produção de veículos no país, o setor automotivo namora o Rio? "A economia do Rio é decadente há 150 anos", diz o secretário Julio Bueno. "Quando deixou de ser a capital do país já foi uma tragédia. Depois, com o choque de capitalismo em São Paulo, o Rio perdeu o dinamismo e transformou-se num lugar de funcionários públicos", afirma. Para Bueno, com carreira de 35 anos como engenheiro da Petrobras, a vocação do Estado para crescimento mais consistente só apareceu com o petróleo.

Hoje, a arrecadação do Rio com petróleo é sete vezes maior do que com a indústria automotiva, segundo o governo estadual, que não revela valores. Como os fabricantes de veículos ainda se beneficiam dos incentivos fiscais, o impacto do setor na economia do Rio ainda está para aparecer.

O que agora torna o Rio atraente para a indústria, diz Bueno, é a infraestrutura disponível, inclusive nos portos. Ao lado de um grande mapa pendurado na maior parede de sua sala, o secretário aponta para o arco metropolitano que circunda o porto de Sepetiba. E aposta que também essa área atrairá empresas.

Em Resende, o prefeito José Rechuan Junior (PP), diz estar preocupado com a infraestrutura. Além dos seus 122 mil habitantes, Resende é limítrofe de 15 municípios (cinco de São Paulo, cinco do Rio e cinco de Minas Gerais). Por isso, recebe moradores de cidades menores, que buscam serviços e comércio. "Se não melhorarmos a estrutura de escolas, postos de saúde e segurança a cidade não aguentará", diz Rechuan, médico que acaba de assumir o segundo mandato de prefeito.

"Quero que a Nissan encontre aqui o que as outras empresas não encontraram", diz o prefeito. Resende estava na disputa pela fábrica da Toyota, inaugurada em Sorocaba (SP) no ano passado. A qualidade de serviços municipais, como hospitais e escolas, que a direção mundial da Toyota fez questão de analisar, ajudou a definir a escolha. Mas a iniciativa privada também quer dar uma mão. Segundo François Dossa, presidente da Nissan, o braço social da empresa que acaba de ser criado (Fundação Nissan), tem projetos para investir no reforço da formação de ensino básico na cidade.

Rechuan planeja construir uma rodovia, paralela à Via Dutra. Projetos dessa natureza esbarram, porém, na dívida de R$ 100 milhões com o governo federal, que se arrasta desde o ano 2000. A cada ano o município destina, em média, R$ 10 milhões só com juros e amortização do endividamento. A proposta do prefeito é pagar a dívida com obras previstas pelo Programa de Aceleração Econômica (PAC), do governo federal.

Em menos de dois anos, dois shopping centers foram erguidos em Resende, um em cada lado do rio Paraíba do Sul, cartão postal da cidade. O rio era o canal de escoamento do café cultivado no século XIX. No centro antigo, os casarões que sinalizam a necessidade de restauração são vestígios da opulência de uma cidade que, poucos sabem, foi o berço do café, segundo Claudionor Rosa, diretor do arquivo histórico municipal.

Resende também não foge à onda de valorização imobiliária, natural nas cidades em expansão. Até o chefe da guarda municipal assustou-se, certa vez, ao ver um grupo de pessoas passar noite inteira no centro da cidade. Pensou que eram ciganos e achou melhor avisar o prefeito. Na verdade, era uma fila de candidatos à compra de lotes de um novo condomínio, o Terras de Alphaville. Paulo Sampaio, dono da imobiliária onde se formou a fila diz que na manhã de lançamento da primeira fase do condomínio foram vendidos 75% dos 436 lotes. Na segunda fase, há três meses, a procura foi maior: "Vendemos tudo em cinco horas." Ele reclama da escassez de mão de obra para a construção civil. E suspeita que a maioria prefere procurar emprego nas montadoras.

Resende, que ficou com a fábrica da Volks caminhões, venceu a disputa com a cidade paulista de São Carlos

A indústria automobilística é conhecida por oferecer um dos Programa de Lucros e Resultados (PLR) mais altos do país. Foi com o PLR que Marcos Chaves, operário na MAN conseguiu entrar num financiamento do programa Minha Casa Minha Vida. Aos 23 anos, ele terminou a faculdade de administração, mas diz que seu lugar é na linha de montagem. Seria impossível, diz, arcar com os estudos e o financiamento da casa se ainda estivesse no mercadinho, seu emprego anterior. Com a estabilidade do salário fixo, Marcos decidiu casar-se com Carla, funcionária da montadora vizinha, a PSA Peugeot Citroën. Mas o casal só vai mudar para o novo sobrado quando Marcos receber o próximo PLR. O dinheiro servirá para erguer um muro, necessário para o cão de estimação não fugir.

Hoje os cursos do Senai ajudam na formação da mão de obra. Mas quando foi inaugurada, a fábrica onde Marcos trabalha chegou a contratar manicures para a área de finalização de pintura das cabines e até alfaiates para o acabamento dos bancos dos caminhões. "Descobrimos uma forma de aproveitar profissionais com habilidades que nos seriam úteis", diz Roberto Cortes, presidente da MAN Latin America.

Cortes, que acompanhou o projeto desde o início, diz que a ideia era encontrar uma área nova, sem vínculos com o setor automotivo. Isso porque seria testado um sistema de manufatura inédito, o consórcio modular, ainda usado, por meio do qual os principais fornecedores trabalham dentro da montadora, na própria linha dos veículos. Marcos Chaves, por exemplo, trabalha na linha da MAN, mas é funcionário da Meritor, fabricante de eixos.

Quando saíram em busca de um lugar para a fábrica, no início da década de 90, os executivos da Volks Caminhões visitaram 40 municípios. Resende venceu a paulista São Carlos. Mas a segunda finalista também lucrou. São Carlos ficou com a fábrica de motores de carros da Volks.

O consórcio modular deu flexibilidade para crescer sem necessidade de investir muito em expansão física. A maior parte dos investimentos - três ciclos de R$ 1 bilhão cada - foi usada em tecnologia e ampliação da linhas de produtos. Hoje a MAN é líder do mercado de caminhões no Brasil. "Começamos com mil funcionários e hoje somos 6 mil", diz o vice-presidente de produção, Adilson Dezoto, em Resende desde a inauguração da fábrica.

Com investimento de R$ 85 milhões, o novo parque de fornecedores da MAN abrirá 700 empregos. As duas montadoras - MAN e PSA - empregam 11,5 mil pessoas. Na Nissan serão mais 2,3 mil empregos, sem contar os demais fornecedores.

A abertura de vagas na indústria automotiva é comemorada pelo Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda, que viu sua base, que abrange sete cidades, encolher com a privatização da Companhia Siderúrgica Nacional. Mesmo assim, a CSN ainda é a maior empregadora, com 6 mil trabalhadores.

Na base automotiva, as relações foram até agora tranquilas. Segundo informações de fontes ligadas à área sindical, os salários dos metalúrgicos nas montadoras do Rio equivalem a menos da metade do que ganham os do ABC.

Para Renato Soares, presidente do sindicato, ligado à Força Sindical, é preciso "ser flexível" no momento em que as empresas investem numa região. "Existe um limite para apertar o capital", diz. "Veja o que acontece com a GM em São José dos Campos."

Mas não é só a indústria que se sente atraída pelo vale fluminense. As fábricas de carros estão a 15 minutos do Parque Nacional de Itatiaia, do charmoso vilarejo de origem finlandesa Penedo e da estrada, recentemente pavimentada, que dá acesso às trilhas e cachoeiras de Visconde de Mauá. Em Resende, é impossível não contemplar o imponente portão que dá acesso à Academia Militar das Agulhas Negras, única na formação de oficiais combatentes do exército no país.

O turismo da região é tão valioso quanto a indústria. E também mais fiel. Rechuan não nega a atual paixão que a população tem pelas montadoras. "Mas já estamos casados com o turismo, comércio e serviço", diz. O prefeito sabe que, ao contrário dos encantos naturais, empresas podem abandonar uma localidade ao menor sinal de uma crise. Ele tem razão. Basta ver o que aconteceu na americana Detroit.