Título: Governo quer 30% das vagas do Sistema S sem custo para estudantes
Autor: Romero, Cristiano e Bittar, Rosângela
Fonte: Valor Econômico, 09/05/2007, Especial, p. A12

Principal responsável pelo plano que promete colocar, em 15 anos, a educação brasileira no mesmo patamar dos países que integram a OCDE, o ministro da Educação, Fernando Haddad, diz que, ao focar a qualidade do ensino básico, a iniciativa representa uma mudança de paradigma. No passado, compara, os programas eram voltados para a construção de escolas e o aumento de matrículas. "O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) coloca o aprendizado como a questão central da escola", sustenta Haddad.

Passado o turbilhão de lançamento do plano, o ministro se debruça sobre o aprofundamento das medidas e sua filosofia e explica que a adoção de uma meta ambiciosa para a melhora da qualidade do ensino básico - um salto de 3,8 para 6 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) - objetiva pressionar os políticos a priorizarem a educação "de uma vez por todas".

Como uma das vertentes do plano é expandir o ensino técnico, Haddad acaba revelando que, com a ajuda da ministra Dilma Rousseff, está comprando uma briga boa com o Sistema S (Sesc, Senai, Sesi etc.), que sobrevive com contribuições parafiscais. A idéia é que essas entidades destinem 30% de suas verbas a cursos profissionalizantes gratuitos. O ministro sugeriu que, se não fizerem isso, o governo poderá obrigá-las.

Valor: O PDE foi feito para alcançar exatamente o quê?

Fernando Haddad: O plano estabelece metas de qualidade para o ensino básico como eixo central da educação. É óbvio que são importantes a infra-estrutura e a cobertura (quantos alunos matriculados por faixa etária), que foram a tônica dos planos anteriores. Nesse sentido, considero o PDE uma mudança de paradigma. O plano coloca o aprendizado como a questão central da escola. Isso tem conseqüências sobre as ações do ministério e das secretarias estaduais e municipais de educação.

Valor: Por exemplo?

Haddad: A formação de professores. Pela atual Lei de Diretrizes e Bases (LDB), a formação é responsabilidade dos Estados e municípios. A LDB diz que o papel da União é apenas suplementar. Esse enfoque precisa ser superado.

Valor: Os Estados e municípios não estão cumprindo seu papel?

Haddad: Nem podem cumprir em toda a dimensão exigida porque quem mantém o parque de universidades no país é a União. Como mantenedora do sistema federal de ensino superior, a União não pode ser desonerada de uma das tarefas mais importantes da universidade, que é a formação do magistério para a educação básica. A alteração disso é fruto da mudança de paradigma. Se a escola é o lugar onde se ensina e se aprende, a primeira conseqüência disso é enfrentar a formação do magistério em regime de colaboração entre União, Estados e municípios.

Valor: A meta do PDE para o ensino básico não é muito ambiciosa?

Haddad: A mais importante delas é fazer o Ideb saltar dos atuais 3,8 para 6, numa escala de zero a dez, em 15 anos. Estamos dizendo que o Brasil vai atingir, em 2022, o padrão de qualidade médio dos países da OCDE. Se não tivéssemos uma meta ambiciosa e que não colocasse pressão sobre os agentes políticos do país para priorizar a educação de uma vez por todas, o plano não estaria bem desenhado.

Valor: Especialistas temem que a premiação das melhores escolas aumente a distância entre elas e as mal avaliadas.

Haddad: A medida foi mal lida. O Ideb nos permite acompanhar cada escola, cada sistema estadual e municipal, e o país no seu conjunto. São indicadores de qualidade. Cruzando os dados dos sistemas estaduais e municipais com as transferências voluntárias feitas pela União nos últimos cinco anos, verificamos que quem mais precisa de recursos é quem menos demanda o Ministério da Educação.

Valor: Por quê?

Haddad: Porque os municípios com baixíssimos indicadores de qualidade não têm capacidade técnica para responder adequadamente às resoluções do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Estamos criando uma força-tarefa, com a ajuda da Unesco. Ela irá aos municípios mais carentes estabelecer parcerias. Será firmado o compromisso do gestor local com 28 diretrizes (entre elas, o acompanhamento individual dos alunos, a nomeação dos diretores de escolas por mérito, a fixação de período probatório para os professores e a adoção de um programa de formação do magistério). Em troca, as prefeituras terão apoio técnico e financeiro da União.

Valor: As pesquisas mostram as dificuldades dos alunos para aprender matemática e ciências. Como o plano combaterá esse problema?

Haddad: De várias maneiras. Sofremos um prejuízo ao simplesmente abolir, no passado, os currículos mínimos. O que estamos fazendo agora é recuperar conteúdos importantes, a serem oferecidos na primeira fase do ensino fundamental e na segunda fase. Isso é essencial para que, inclusive, o professor consiga transmitir conhecimento aos alunos. Criamos, com base nas matrizes dos exames nacionais, um programa chamado Pró-Letramento, forjado pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da Universidade Federal de Minas Gerais. O Ceale desenvolveu um programa, junto com outras universidades, que repensa o letramento e o numeramento para que possamos capacitar os professores dos anos iniciais do ensino fundamental. No ensino médio, estamos criando os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia.

Valor: Com que finalidade?

Haddad: São 150 novas unidades. Hoje, temos as escolas federais técnicas, agro-técnicas e os Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets). Em 2002, havia 140 unidades voltadas para a formação de técnicos e tecnólogos. Terminaremos 2007 com 204 e o segundo mandato do presidente Lula com 354 unidades. Todas as cidades-pólo do país serão atendidas por uma unidade desses institutos, cuja missão será formar técnicos, tecnólogos, professores de física, química, biologia e matemática para o segundo grau.

Valor: O país também está vivendo o dilema entre ensino médio profissionalizante e preparação para estudos posteriores? O plano considera essa questão?

Haddad: Sim. Propusemos ao Congresso uma alteração da LDB, que só tratava do ensino médio propedêutico. Em um país com as características do Brasil, em que apenas um sexto dos alunos chega ao ensino superior, é preciso oferecer, no nível médio, uma alternativa ao ensino propedêutico [preparatório para os cursos superiores e não profissionalizante], sem prejuízo da formação geral.

Valor: Com o PDE, como fica o ensino profissionalizante?

-------------------------------------------------------------------------------- Do ponto de vista de transferência de recursos, induzimos o investimento em educação profissional" --------------------------------------------------------------------------------

Haddad: Estamos abrindo a possibilidade do ensino médio propedêutico, combinado com a profissionalização, e do ensino médio propedêutico, seguido do pós-médio técnico. Todas as possibilidades estão contempladas na LDB enviada ao Congresso.

Valor: Dá para atender a demanda da economia por técnicos apenas com as escolas federais, já que o governo não obrigará Estados e municípios a atuarem nessa área?

Haddad: Há uma indução. Ao diferenciar o coeficiente de remuneração da rede por ensino médio integrado (propedêutico e profissionalizante), o Fundeb induz Estados e municípios a oferecerem ensino técnico. O ensino integrado receberá um adicional de recursos em relação ao ensino médio propedêutico, inclusive, porque o integrado é mais custoso. Do ponto de vista de transferência voluntária de recursos, estamos induzindo também o investimento em educação profissionalizante via Proep e Promed, dois programas do BID em parceria com o Ministério da Educação, voltados para a reestruturação do ensino médio.

Valor: Será suficiente?

Haddad: Se, em parceria com o Sistema S, que ainda é um pouco refratário ao apelo que o governo vem fazendo, oferecêssemos aos alunos do ensino médio, sobretudo da rede pública, a oportunidade de formação técnica gratuita, teríamos um rearranjo do sistema muito interessante.

Valor: O Sistema S já concordou com a parceria?

Haddad: Tem havido avanços tímidos, mas eles têm ocorrido. Inclusive, esse assunto passou a ser da alçada da Casa Civil, em parceria com o Ministério da Educação. A ministra Dilma Rousseff tem convocado os dirigentes das federações. Já houve uma reunião em atendimento a moção aprovada na Conferência Nacional de Educação Profissional, realizada em 2006. Ela prevê que 30% dos recursos do Sistema S sejam direcionados à oferta de cursos técnicos gratuitos.

Valor: Se o Sistema S não respeitar a moção, o governo obrigará as entidades por meio de lei?

Haddad: Os 30% gratuitos são uma demanda da sociedade organizada que participou da conferência. Estamos trabalhando na perspectiva de que possamos estabelecer um protocolo pelo qual esse desejo da sociedade possa ser atendido.

Valor: Sempre se avaliou que, enquanto o país não cuidasse do ensino básico e da formação do magistério, a educação não sairia do impasse em que se encontra. O plano tem esse foco, mas prevê também prioridade ao ensino superior, com uma nova expansão de vagas e universidades. Isto é uma concessão do governo do PT aos sindicatos dos professores e dos funcionários?

Haddad: É exatamente o contrário. Trata-se do resgate de uma visão sistêmica da educação, muito cara aos principais educadores do país. É a percepção de que o sistema educacional vai da creche à pós-graduação. Todas as fases, etapas, modalidades e níveis da educação têm que ser apoiadas.

Valor: Há recursos suficientes para focar o ensino básico e, ao mesmo tempo, dobrar o número de vagas nas universidades federais?

Haddad: De cada R$ 100 investidos em educação no Brasil, cerca de R$ 20 vão para a educação superior e R$ 80 para o ensino básico. Essa é a média internacional. O PDE não altera essa proporção. O problema da educação superior é que o custo por aluno é muito maior do que o da educação básica. A relação entre o número de alunos e o de docentes na graduação é muito menor no Brasil do que na média internacional - 10 face a 17, 18 lá fora. O problema, então, não é que o professor universitário brasileiro esteja ultra bem remunerado. É porque a relação aluno-professor é baixa.

Valor: E por que é baixa?

Haddad: É baixa não por falta de vontade das universidades de incorporar novos alunos. O problema é a falta de reformas acadêmicas. Nossa estrutura acadêmica é muito engessada. É muito comum um aluno passar no vestibular, conhecer o curso, desistir dele, abandoná-lo e prestar vestibular para outro curso. Não há um sistema de aproveitamento de créditos. Não há mobilidade estudantil. Os currículos são, em geral, extremamente engessados. Não há programas de reaproveitamento de vagas abertas por evasão. Quando um aluno abandona um curso, aquela vaga morre. Mas, as universidades acordaram para o problema.

Valor: O senhor acha que o ensino universitário privado está excessivamente regulado ou sub-regulado? O que há, no PDE, dirigido para esse imenso mercado de ensino superior no Brasil?

Haddad: Ele ainda está mal regulado. Não há excesso nem falta de regulação. O problema é de enfoque. Os cursos superiores de tecnologia, por exemplo, viviam uma verdadeira anarquia. Tudo era chamado de curso superior de tecnologia no Brasil, a ponto de oferecermos 3 mil cursos, com 1.300 denominações diferentes. Por causa disso, o diploma do aluno recém-formado não era sequer reconhecido pelo mundo do trabalho. Criamos um catálogo de cursos superiores de tecnologia e normatizamos a oferta.

Valor: O mercado privado de ensino superior é tão vasto e heterogêneo que não exigiria uma agência reguladora para orientá-lo?

Haddad: A Lei do Sinaes, que criou o sistema nacional de avaliação da educação superior, foi um avanço. Ela diz que todos os cursos têm de ser avaliados. Pelo "provão", apenas um terço dos cursos eram avaliados. Hoje, avaliamos os 20 mil cursos de graduação do país. O "provão" passou a ser um dos elementos da avaliação, mas, antes, ela não dialogava com a regulação. Hoje, a avaliação é a base da regulação.

Valor: O senhor não acha necessário criar uma agência reguladora para o ensino superior privado?

Haddad: O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) exerce esse papel de agência reguladora. É uma autarquia, mas toda a avaliação de alguma maneira é feita pela comunidade acadêmica e não por agentes políticos.