Título: Chávez dividiu o povo e a renda do petróleo
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Fonte: Valor Econômico, 06/03/2013, Internacional, p. A12

Nascido em uma família pobre, em 28 de julho de 1954, em Sabaneta, no noroeste da Venezuela, Hugo Rafael Chávez Frías sonhava em ser pintor ou jogador de beisebol até entrar, aos 17 anos, para a Academia de Ciências Militares, em Caracas. Ali, nas suas palavras, sentiu-se "como um peixe na água. Como se tivesse descoberto a essência, ou parte da essência da vida, a verdadeira vocação".

Dentro das Forças Armadas, onde alcançou a patente de tenente-coronel, fundou dois movimentos secretos - o Exército de Liberação do Povo da Venezuela e o Exército Revolucionário Bolivariano-200 (mais tarde rebatizado como Movimento Revolucionário Bolivariano-200) - e passou a manter contatos com marxistas venezuelanos de destaque. Em fevereiro de 1992, com o país em crise e o presidente Carlos Andrés Pérez adotando pesados ajustes impostos pelo FMI, Chávez promoveu um fracassado golpe militar. Apesar do insucesso da ação e de acabar na prisão, Chávez obteve projeção nacional. Muitos passaram a admirá-lo por ter se erguido contra um governo envolto em corrupção.

Em 1994, o centrista Rafael Caldera assumiu a Presidência e libertou Chávez e os demais golpistas. Ao sair da prisão, foi recepcionado por uma multidão e pouco depois deu início a um giro de cem dias pelo país, em busca de apoio para o seu movimento. Em julho de 1997, Chávez e o seu grupo fundaram um partido político, o Movimento Quinta República, já de olho nas eleições presidenciais do ano seguinte. Mesmo com os dois principais partidos se unindo para apresentar um candidato comum, Chávez obteve 56,2% dos votos. Em 1999, um ano depois de eleito, Chávez conseguiu alterar a Constituição de 1961 - entre outras modificações, aumentou o mandato do presidente de cinco para seis anos. Antecipou a eleição e teve uma vitória com 59,8% dos votos válidos em 2000.

Inspirado por Simón Bolívar, venezuelano que foi um dos líderes dos movimentos por independência de vários países latino-americanos no século XIX, Chávez trocou o nome do país, de República da Venezuela para República Bolivariana da Venezuela, e passou a preconizar uma "Revolução Bolivariana" para a implantação de um não muito claro "socialismo do século XXI". O lema é baseado "na fraternidade, no amor, na justiça, na liberdade e na igualdade".

Em termos práticos, esse socialismo foi definido com a criação de dezenas de milhares de cooperativas e várias estatais e a nacionalização de inúmeras empresas de diversos setores da economia - petróleo, agricultura, sistema bancário, indústria pesada, ouro, aço, telecomunicações, transportes e turismo. No final de 2012, o país enfrentava cerca de 20 processos na corte de arbitragem do Banco Mundial, em que os antigos donos das empresas estatizadas contestavam o valor das indenizações oferecidas.

Uma boa parte da popularidade desfrutada por Chávez na Venezuela pode ser creditada ao grande conjunto de programas sociais (ou misiones bolivarianas). Entre os mais importantes estão o de assistência a idosos ("Amor Mayor"), a versão venezuelana do Bolsa Família - US$ 100 mensais para cada criança menor de 17 anos - e os de habitação, requalificação profissional e de alimentos subsidiados.

Os gastos sociais foram financiados pelas enormes reservas de petróleo venezuelanas - o país tem os maiores depósitos comprovados do mundo, estimados em 296,5 bilhões de barris. A economia venezuelana é extremamente dependente dessa atividade: a commodity representa cerca de 60% das receitas do governo federal e 30% do PIB. As despesas públicas, somadas a aumentos do salário-mínimo e expansão do crédito, geraram uma explosão de consumo que resultou na maior inflação da América Latina - 19,9% em 2012, segundo cálculo preliminar do BC venezuelano, e 31,2% de acordo com estimativa do FMI. Além dos preços altos, os venezuelanos passaram a enfrentar uma crise energética, com sucessivos blecautes a partir de 2010.

De positivo, houve avanços em vários indicadores de qualidade de vida. Os níveis de analfabetismo, desigualdade de renda, pobreza e de mortalidade infantil caíram. A expectativa de vida e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) subiram.

Seu socialismo foi definido com a criação de cooperativas e estatais e a nacionalização de inúmeras empresas

Nos 14 anos que passou como presidente, os momentos de maior crise ocorreram em abril de 2002, quando um golpe militar o tirou do poder por dois dias. Chávez vinha enfrentando na época greves e protestos que levavam centenas de milhares de pessoas às ruas, num movimento de oposição deflagrado por uma intervenção do presidente na estatal petrolífera PDVSA para afastar diretores não alinhados com o governo. Aproveitando o momento de instabilidade, na madrugada do dia 12 um grupo de militares dissidentes prendeu Chávez na ilha de La Orchila. Os golpistas instituíram um governo provisório, chefiado por Pedro Carmona, presidente da maior associação empresarial do país e grande líder anti-chavista.

Porém, as Forças Armadas estavam rachadas e setores militares leais ao presidente se rebelaram depois de perceber a pressão popular pró-Chávez e o forte apoio político de governadores. Apenas 28 horas depois de assumir a Presidência, Carmona renunciou. Ao regressar ao palácio presidencial de Miraflores, um bem-humorado Chávez fez um discurso que terminou perto do amanhecer. Segurando uma cruz e uma miniatura da Constituição venezuelana, fez um "chamado à unidade, respeitando as diferenças" e disse que não haveria "caça às bruxas".

Sentindo que, apesar de escapar do golpe, ainda estava enfraquecido, Chávez procurou passar uma imagem conciliadora. Também sinalizou um desejo de ampliar seu apoio ou, pelo menos, amenizar a rejeição da classe média e da elite venezuelana. "Quero dar uma mensagem de amor e carinho para as classes alta e média. No meu coração não há ódio." Ainda pediu que a oposição ocupasse "seu espaço" e elaborasse um projeto alternativo às suas propostas para ser debatido com o governo.

A agressividade ele reservou para os Estados Unidos, país que acusou de dar apoio aos golpistas. Embora não tenha admitido o envolvimento, o governo americano lutou intensamente, e acabou isolado, para tentar impedir que a Organização dos Estados Americanos (OEA) emitisse uma condenação à "alteração da ordem constitucional" na Venezuela. Além disso, reportagem do "The New York Times" durante a crise afirmou que altos funcionários do governo de George W. Bush encontraram-se diversas vezes com líderes golpistas antes da ação fracassada.

O antagonismo em relação aos EUA levou Chávez a abraçar várias teorias conspiratórias. No fim de 2006, sugeriu que as torres gêmeas do World Trade Center poderiam ter caído pela ação de explosivos. "A hipótese de que as torres possam ter sido dinamitadas não é absurda. Um prédio nunca cai daquele jeito, a não ser que seja com uma implosão. A hipótese que está ganhando força (...) é que foi a mesma força imperial americana que planejou e realizou esse terrível ataque terrorista contra o seu próprio povo e contra cidadãos de todo o mundo. Por quê? Para justificar as agressões que foram imediatamente realizadas no Afeganistão, no Iraque", afirmou.

Em dezembro de 2011, logo em seguida ao anúncio de que a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, tinha câncer - o que mais tarde não se comprovou -, ele também cogitou que o grande número de casos da doença em líderes sul-americanos era fabricação americana. "Não acharia estranho se eles tivessem desenvolvido a tecnologia para induzir câncer e ninguém soubesse até agora... Não sei, estou apenas refletindo", disse.

Na série de escaramuças com os EUA, Chávez procurou constranger o então presidente George W. Bush - a quem comparou ao diabo ao fazer em 2006 um discurso na ONU e dizer que sentia "cheiro de enxofre", referindo-se ao fato de o líder americano, que esteve na sede da entidade um dia antes - valendo-se das fartas reservas de petróleo do país. Nesse mesmo ano, por meio da Citgo, uma subsidiária da PDVSA que refina petróleo e distribui combustível nos EUA, Chávez passou a vender óleo para aquecimento a preços subsidiados para americanos pobres.

A ajuda externa venezuelana também se estendeu a outro país rico. Em 2007, o governo da Venezuela assinou acordo com Ken Livingstone, o então prefeito esquerdista de Londres, para subsidiar durante um ano combustível aos ônibus da cidade - o desconto de 20% foi usado para financiar passagens pela metade do preço a moradores pobres.

No entanto, os principais beneficiários da diplomacia chavista se concentraram na América Latina: Cuba, Bolívia, Equador, Nicarágua e até Argentina são alguns dos países que receberam empréstimos, doações de carros policiais, helicópteros e clínicas de saúde e descontos na venda do petróleo. Analistas estimam que a ilha comunista do Caribe depende da Venezuela para dois terços do seu consumo de petróleo. O governo de Chávez também enviava anualmente cerca de US$ 5 bilhões (15% do PIB cubano pelos valores de 2008) para pagar pelo "empréstimo" de médicos e treinadores esportivos.

De acordo com documentos obtidos pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), Chávez também teria dado auxílio às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Material apreendido com o ex-líder das Farc Raúl Reyes mostra que Chávez manteve ligações com o grupo e fez uma promessa de dar em 2007 US$ 300 milhões aos guerrilheiros. Diante da força das provas do IISS, Chávez reconheceu que alguns de seus aliados haviam colaborado com as Farc, mas insistiu que desconhecia o auxílio.

O fato causou um incidente diplomático com a Colômbia. Em 2010, Chávez rompeu as relações com o país vizinho depois que o governo de Álvaro Uribe apresentou à OEA vídeo no qual apareciam supostos acampamentos rebeldes colombianos na Venezuela. O presidente venezuelano acusou Uribe de mentiroso. "Pelo lado da Colômbia, lamentavelmente, não há um governo sério", disse Chávez.

Durante a era Chávez, os níveis de analfabetismo, desigualdade de renda, pobreza e de mortalidade infantil diminuíram

Acostumado a falar grosso, Chávez ficou sem reação em 2007, ao participar de uma reunião de cúpula Ibero-Americana no Chile. Na ocasião, o rei da Espanha, Juan Carlos I, perdeu a paciência ao vê-lo interromper repetidamente o então primeiro-ministro José Luis Rodríguez Zapatero. Exasperado, Juan Carlos soltou um "¿Por qué no te callas?". O monarca foi intensamente aplaudido pela plateia.

Em 2004, Chávez enfrentou e superou outro grande período de contestação. Após o fracasso do golpe militar, a oposição centrou seus esforços na convocação de um "recall", referendo em que a população decidiria o afastamento ou não de Chávez da Presidência - o mecanismo foi introduzido pela Constituição de 1999, cuja adoção teve o patrocínio dele próprio. Inicialmente, ele tentou de todas as formas impedir a realização do referendo, contestando na Justiça a validade de milhões de assinaturas coletadas para a convocação do voto. Com o referendo mantido por decisão da Suprema Corte, Chávez obteve uma grande vitória, tendo quase 60% dos votos. A oposição alegou fraude na votação, mas o processo foi referendado pela OEA e pelo Centro Carter, instituto independente do ex-presidente americano Jimmy Carter.

Em dezembro de 2006, Chávez ganhou mais um mandato. Teve 63% dos votos e venceu com facilidade os candidatos da oposição. Fortalecido, deixou de lado o tom ameno dos momentos de fraqueza e exibiu no discurso da vitória a retórica que caracterizaria o resto de seu período à frente da Venezuela. "Hoje começa uma nova era, que terá como ideia-força central o aprofundamento, a ampliação e a expansão da revolução bolivariana em direção ao socialismo. Convido todos os setores da vida nacional a construir essa Venezuela socialista. Que ninguém tenha medo do socialismo", conclamou.

Um ano depois, em 2007, sofreu a sua primeira derrota numa votação nacional, em um referendo que rejeitou projeto para mais uma reforma constitucional. Segundo Chávez, as modificações em 69 dos 350 artigos da Carta seriam o mais importante passo para colocar a Venezuela no rumo do "socialismo do século XXI".

Entre as principais alterações propostas estavam a permissão para reeleições ilimitadas do presidente, a centralização de maiores poderes no Executivo e o enfraquecimento de direitos sobre a propriedade privada. Para favorecer o voto no sim, Chávez incluiu na reforma a ampliação de benefícios sociais, como o aumento da aposentadoria e a redução da jornada de trabalho para 36 horas semanais. Ainda assim, por pequena margem, as mudanças foram descartadas. Chávez classificou a rejeição ao projeto como uma "vitória de merda" da oposição.

Em junho de 2011, durante uma visita a Cuba, Chávez foi operado para retirar o que foi inicialmente descrito como um abcesso pélvico. Três semanas depois, em meio a vários rumores sobre o seu real estado de saúde, Chávez confirmou que estava com câncer e que havia feito duas cirurgias, mas não deu detalhes nem mesmo informou a localização do tumor. A falta de informações e transparência se tornaria uma rotina ao longo de todo o processo de evolução da doença do comandante bolivariano.

Em fevereiro de 2012, Chávez retornou a Cuba para outra operação, extraindo uma lesão de dois centímetros no mesmo local das primeiras intervenções. Após alguns dias, disse que se tratava de um tumor maligno. Menos confiante, falou sobre a "revolução" prosseguir sem ele. "Não sou imortal", disse. Em abril, chorou em missa antes da Páscoa e fez um apelo: "Dê-me vida, ainda que seja dolorosa, mas dê-me vida. Dê-me sua coroa, Cristo, que eu a coloco. Dê-me sua cruz, cem cruzes, Cristo, que eu as carrego, mas não me leve ainda, porque ainda tenho coisas para fazer por esse povo e por essa pátria", declarou Chávez.

Após uma campanha em que pouco apareceu, devido à doença, em 7 de outubro de 2012, Chávez conquistou mais um mandato nas urnas. Na mais apertada das suas disputas, derrotou Henrique Capriles, obtendo 8,2 milhões de votos (55%). Menos de dois meses depois, retornou a Cuba para mais sessões de seu tratamento contra o câncer. Após alguns dias, voltou brevemente à Venezuela para anunciar o chanceler e vice-presidente Nicolás Maduro como seu herdeiro político. No dia 11, submeteu-se à quarta operação contra o câncer em Havana.

Após mais de dois meses de total ausência pública, em 19 de fevereiro, Chávez voltou à Venezuela. O retorno ocorreu de surpresa, sem que fossem divulgadas imagens da chegada a Caracas. "Chegamos de novo à Pátria venezuelana. Obrigado, meu Deus!! Obrigado, Povo amado. Aqui continuaremos o tratamento", tuitou o presidente da Venezuela.

Chávez deixa um filho (Hugo Rafael) e três filhas (Rosa Virginia, María Gabriela e Rosinés), frutos de dois casamentos que terminaram em divórcio, com Nancy Colmenares e Marisabel Rodríguez.