Título: Herança deixada a Maduro pode ser cálice envenenado
Autor: Mander, Benedict
Fonte: Valor Econômico, 07/03/2013, Internacional, p. A12

Pouco antes de anunciar a morte do presidente Hugo Chávez na terça-feira, o esperado sucessor fez algumas acusações pouco dissimuladas.

O vice-presidente Nicolás Maduro defendeu uma investigação sobre o câncer que atingiu o líder venezuelano e sugeriu que os "inimigos históricos" do país tiveram influência em sua doença. Caso restassem dúvidas sobre a identidade desses inimigos, ele expulsou dois diplomatas dos EUA.

As acusações de Maduro tinham algo de familiar. O próprio Chávez considerou em 2011 que os EUA poderiam ter desenvolvido alguma tecnologia cancerígena que havia infectado a ele e à presidente da Argentina, Cristina Kirchner.

O recado presente no violento ataque de Maduro contra os ianques foi claro: a autoproclamada luta socialista contra os EUA e seu tipo de capitalismo ainda está viva. Não será fácil, no entanto, continuar essa luta. Maduro estará às voltas agora para preencher o vazio deixado por um homem cujo carisma abundante o tornou uma figura celebrizada, ainda que polarizada, em casa e no exterior.

Se o recado de Maduro tinha algo de familiar, o discurso não foi o que os venezuelanos se acostumaram a esperar nos últimos 14 anos. Maduro fala de forma seca e resoluta, enquanto Chávez temperava suas frequentes censuras anti-EUA com músicas, danças e piadas que lhe valeram uma vasta legião de seguidores.

Ainda mais importante, muitos venezuelanos pobres frequentemente perdoavam Chávez pela maré cada vez maior de problemas econômicos e sociais do país - que inclui desde uma inflação nas alturas até um dos maiores índices de homicídios do mundo. O ex-paraquedista havia conquistado uma devoção inabalável por incluir os pobres em um processo político do qual eles tinham sido excluídos havia muito tempo. Também o veneravam por ter reduzido a pobreza pela metade e criado lojas e clínicas com preços mais baixos em bairros indigentes.

A aura peculiarmente inviolável que envolvia Chávez pôde ser vista claramente no fenômeno de solicitações que se disseminou sob seu governo. Embora muitos venezuelanos pobres admitissem que a corrupção e a ineficiência eram comuns em seu governo, eles se reuniam frequentemente - mesmo durante tempestades tropicais - para apresentar-lhe pedidos pessoais de ajuda. O próprio Chávez era visto com isolado das falhas de seu governo. Agora que ele se foi, é mais provável que a má administração das maiores reservas de petróleo do mundo venha a assombrar seu sucessor.

Embora seja provável que Maduro ganhe a eleição antecipada, dentro de 30 dias, ele não conseguirá atrair a reverência quase religiosa que cercava Chávez. Quando a efusão de pesar se esvanecer, Maduro terá de confrontar o agravamento das mazelas econômicas do país, sabendo que as pessoas vão considerá-lo muito mais passível de responsabilidade por erros e falhas.

Maduro, 50 anos, um ex-motorista de ônibus e líder sindical com seu característico bigode, é um dos poucos integrantes do pequeno círculo de seguidores mais leais que sobreviveram ao show quase sempre de só uma pessoa que foi o governo de Chávez. Ele é relativamente pouco conhecido, graças à tendência do falecido presidente de seguir uma microgestão e de assumir todas as decisões importantes de seus ministros e, muitas vezes, de também falar por eles.

Maduro tem reputação de ser um diplomata perspicaz. Autoridades colombianas que o observaram durante as negociações de paz em 2012 com os rebeldes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em Havana o elogiaram por sua esperteza. Agora, contudo, Maduro estará em um palco muito maior.

Há quase três meses, antes de Chávez voltar a Havana para passar pela quarta e última cirurgia contra o câncer, ele indicou Maduro como seu herdeiro político, dizendo ao país para - "caso algo me aconteça" - votar nele.

E aconteceu. Sua morte fecha um capítulo turbulento, em que Chávez, eleito pela primeira vez em 1998, subjugou a elite política que dominou o país por 40 anos. O autodescrito socialista teve a sorte de navegar uma onda de altos preços do petróleo para financiar seus programas sociais.

É provável que a má administração das maiores reservas de petróleo do mundo irá assombrar o sucessor

Suas reformas econômicas, entretanto, agora podem significar que Maduro terá de herdar um cálice envenenado. Chávez encabeçou milhares de estatizações, deixando fazendas, bancos e empresas de energia e telecomunicações sob o controle do Estado. Ele confiscou operações de grandes empresas estrangeiras, mais notoriamente tirando as participações majoritárias da ExxonMobil e ConocoPhillips de seus projetos no Orinoco.

Suas reformas lhe garantiram a adulação de seus principais simpatizantes, mas essa remodelação da economia teve um preço. Chávez deixa como herança um país apoiando-se nas cordas. Tem uma das inflações mais altas do mundo, uma moeda significativamente sobrevalorizada apesar da desvalorização de 32% em fevereiro e escassez generalizada de artigos básicos, como farinha, ovos, açúcar e até gasolina.

"Chávez estava mais interessado em entrar para a história em uma onda de gastos com dinheiro emprestado", diz o economista venezuelano Juan Nagel, da Universidad de los Andes, em Santiago, e coeditor do influente blog Caracas Chronicles. "Mas a confusão que seu sucessor terá que enfrentar é enorme."

Todos os olhos estão voltados para as reservas de petróleo. Empresas petrolíferas estrangeiras estarão atentas a qualquer pista de que Maduro possa suavizar a posição em relação aos investidores para melhorar a condição econômica do país. A rede de aliados esquerdistas do país também vai estar preocupada: em especial, Cuba, onde o regime de Castro foi, na prática, impulsionado pela diplomacia dos petrodólares de Chávez.

Mas a transição será sentida com mais intensidade na própria Venezuela, porque a extravagância do modelo econômico alimentado pelo petróleo, que Chávez usou para amplificar sua popularidade. pode ter chegado a seu fim.

O Estado venezuelano gastou mais de US$ 1 trilhão da receita com petróleo nos últimos 60 anos, mas um terço desse dispêndio ocorreu desde que Chávez chegou ao poder em 1999. Em 2012, apesar de os preços do petróleo estarem perto de seu recorde, o país chegou a acumular um déficit fiscal estimado em 17% da produção, com Chávez gastando pesadamente para assegurar sua reeleição na eleição presidencial de outubro.

Essas pressões levam muitos a acreditar que Maduro terá de ser mais pragmático. Ainda assim, é incerto se ele tentará corrigir as múltiplas distorções e anomalias na economia.

O fato de os títulos de dívidas soberanas do país terem aumentado 40% nos últimos 12 meses indica a crença em Wall Street de que uma Venezuela pós-Chávez pode acabar adotando uma política econômica mais ortodoxa.

Daniel Kerner, analista do Eurasia Group, suspeita que Maduro "poderá acabar revelando-se mais chavista que Chávez", argumentando que Maduro terá de "firmar seu espaço como sucessor de Chávez tomando decisões radicais, convencendo assim os chavistas mais extremados de que prosseguirá com a revolução".

Reunir o apoio dos mais radicais é particularmente importante para Maduro, pois reforçará sua posição contra outros dois homens do círculo íntimo de Chávez que são vistos como seus colaboradores mais próximos, mas também como seus concorrentes mais ativos: Diosdado Cabello, presidente da Assembleia e ex-companheiro de armas de Chávez, que participou de sua fracassada tentativa de golpe em 1992 e continua a ser popular entre os militares, e Rafael Ramírez, presidente da PDVSA, poderosa companhia petrolífera estatal.

Até agora, as ações de Maduro sugerem que ele tem pouca intenção de desviar-se do radicalismo de Chávez. Seguindo seu mentor, Maduro não se absteve de acusar o setor privado de provocar escassez por "estocagem e especulação". Ele recentemente confiscou armazéns da Pepsi-Cola Venezuela, subsidiária da Polar, maior empresa privada venezuelana.

Maduro advertiu as empresas privadas, no mês passado, de que elas estavam "brincando com fogo" e assegurou às pessoas que, se forem às ruas em protesto contra a estocagem de alimentos, "nós estaremos ao lado delas".

Maduro pode permanecer otimista pelo fato de a economia estar de joelhos, e não tombada por terra

"Maduro está herdando uma situação difícil, eu não acho que alguém poderia negar isso", disse Steve Ellner, um historiador da venezuelana Universidade de Oriente. Há "intensas pressões sociais originadas de diferentes grupos: da classe trabalhadora, daqueles que querem um aumento no tamanho do Estado para fazer avançar o processo [revolucionário] e dos setores marginalizados que querem dinheiro para os programas sociais".

Encontrar dinheiro é um problema. Sem um aumento sustentado dos preços do petróleo, Maduro precisar reduzir o desperdício e tornar os gastos do governo mais eficazes. Se não conseguir cumprir as promessas revolucionárias de Chávez, em particular a manutenção dos programas sociais, Maduro terá de enfrentar graves problemas. "É um esquema de pirâmide. A única maneira de a economia chavista ser sustentável é a entrada de cada vez mais dinheiro do petróleo", diz o professor Nagel. "Isso não pode durar."

Tudo isso tornou a oposição mais ousada. Mas, embora tenha ganho popularidade e ficado mais unificada depois de aprender com seus erros durante os anos de Chávez, muitos simpatizantes da oposição estão desmoralizados, depois de sofrer pesadas perdas, tanto nas eleições presidenciais em outubro passado como nas eleições regionais em dezembro, apesar de Chávez não estar presente para fortalecer seus candidatos mais fracos.

O Partido Socialista Unido continua a ser uma máquina formidável na mobilização de eleitores. Apesar das dúvidas sobre sua sustentabilidade, os avanços sociais promovidos por Chávez implicam que a maioria pobre provavelmente continuará a apoiar seu sucessor.

"Nós nunca vacilamos em nosso apoio à revolução bolivariana. Não chegamos até aqui para nada. Agora somos todos Chávez", gritou um chavista em lágrimas em recente manifestação.

Maduro pode permanecer otimista pelo fato de a economia estar de joelhos, e não tombada por terra. Embora a dívida da Venezuela seja agora dez vezes maior do que há uma década, continua a ser relativamente baixa, a cerca de 50% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso se compara a uma média de 82,5% no caso da União Europeia em 2012. Não apenas o governo pode emitir mais dívida como também pode obter mais financiamento junto a países como a China, que emprestou cerca de US$ 40 bilhões à Venezuela nos últimos seis anos.

Ainda assim, mesmo a Venezuela está sujeita às forças da gravidade econômica. Quando elas entrarem em ação, o país poderá tombar com um estrondo. Existe um precedente histórico para isso: o caso de Carlos Andrés Pérez, cuja primeira presidência, na década de 1970, coincidiu com um boom do preço do petróleo.

Embora em lados opostos do espectro político, os dois presidentes eram populistas perdulários e "tinham visões faraônicas para a Venezuela", diz Enrique Krauze, influente historiador mexicano. Quando Pérez foi reeleito para um segundo mandato, em 1989, o seu sonho implodiu depois de um colapso dos preços do petróleo. Semanas após o início de seu mandato, a sociedade venezuelana explodiu numa revolta popular.

Ironicamente, foi esse colapso que inspirou Chávez a liderar um golpe, três anos depois. Mas, embora Pérez hoje seja generalizadamente criticado, Krauze acredita que mesmo que a economia venezuelana sofra um novo colapso, Chávez "continuará a ser adorado pelo povo, o que lembra um pouco Eva Perón [na Argentina]. O chavismo poderá desmoronar, mas o nome de Chávez perdurará como o de um santo".