Título: Alavancagem derrubou ações
Autor: Bautzer, Tatiana
Fonte: Valor Econômico, 07/03/2007, Finanças, p. C12

A causa real do 'crash' é o excesso de alavancagem nos mercados, que os deixou incrivelmente suscetíveis"

Na China não há o efeito de perda de riqueza porque o mercado é muito pequeno em relação à economia"

O excesso de alavancagem nos mercados internacionais é a razão das sucessivas quedas em bolsas de valores mundiais, afirma o professor de Finanças da universidade de Pequim, Michael Pettis. A multiplicação das apostas com a alavancagem deixou os mercados "incrivelmente suscetíveis" a qualquer mudança de comportamento do consumidor americano, acredita o professor da Guanghua School of Management.

Ex-diretor do banco Bear Stearns em Nova York e professor da Universidade de Columbia, Pettis decidiu morar na China depois de visitar o país pela primeira vez em 2001. Durante a infância e adolescência, a família de Pettis morou no Peru, Paquistão, França e Espanha. Desde sua mudança para Pequim, Pettis já publicou artigos analisando o caráter especulativo dos mercados de capitais na China e o 'buraco' no sistema financeiro do país. Pettis acha que o 'crash' nos mercados chineses não está relacionado ao 'crash' mundial, e que o momento em que os dois eventos ocorreram criou a impressão de uma relação de causalidade que não existe. A seguir, a entrevista concedida ao Valor por e-mail.

Valor: O que causou o pânico recente na China?

Pettis: O momento em que o pânico ocorreu causou muita confusão. Praticamente não houve relação entre o que ocorreu na China e a reação subseqüente nos mercados globais. Os mercados chineses colapsaram por questões que só afetaram os mercados locais, que são puramente especulativos e portanto muito vulneráveis a grandes oscilações de preço. Especificamente, depois de uma alta de 150% nos últimos 18 meses e de 10% só em janeiro, o governo deixou claro que estava preocupado com a existência de uma "bolha" como a que vimos no final da década de 90, que demorou cinco anos para desinflar, depois do estouro em junho de 2000. As autoridades financeiras, e até o premiê Wen Jiabao indicaram seu desejo de desacelerar o mercado.

Mas na China as autoridades financeiras têm poucos instrumentos para influir nos mercados, estão são obrigadas a usar medidas administrativas excessivamente duras. Essas medidas, que incluem maior fiscalização sobre as atividades de empréstimo de ações por bancos e corretoras, rumores de alta dos juros e de novos impostos sobre ganhos de capital e rumores de uma alta brusca nas vendas de ações em mãos do governo deixaram os mercados muito nervosos e esperando por uma correção. Quando os preços de energia e metais começaram a subir, esse foi o sinal para que os especuladores, que já haviam ganho muito dinheiro em 2007, realizassem os lucros.

A preocupação foi exacerbada porque no sábado seguinte começariam as festividades do ano novo chinês, que é um feriado muito importante, que praticamente fecha o país por mais de uma semana. Muitos também esperavam anúncios que afetariam os mercados na reunião do Congresso Nacional do Povo nessa semana.

O ponto principal é que o pânico nas bolsas da China foi criado por condições locais que não tinham nada a ver com as condições da economia real ou com mercados em outros países.

Valor: O senhor afirmou em artigos que no mercado chinês só existem especuladores e que o investimento fundamentalista é impossível. Isso se mantém hoje?

Pettis: É impossível ser um investidor fundamentalista na China porque não existem ferramentas para isso. As estatísticas macroeconômicas estão melhorando, mas ainda são sujeitas a erro, os dados financeiros das empresas são muito questionáveis, as taxas de juros são controladas (e baixas demais), dificultando o cálculo apropriado do custo de capital. As leis ainda são nebulosas em relação ao controle da propriedade e aos objetivos financeiros de empresas estatais, que predominam no mercado.

Além disso, estamos no meio de uma grande transição entre uma economia estatal para uma economia de mercado, e por isso ainda não estão claros os objetivos dos executivos na maior parte das empresas- o objetivo é maximizar o valor para os acionistas? Maximizar vendas? Reduzir o desemprego? Reduzir problemas sociais? Cumprir os objetivos políticos dos secretários locais do Partido Comunista? Proteger o poder e influência dos políticos locais? Facilitar fraude e corrupção? Se não sabemos o que os gerentes estão tentando fazer, é difícil estimar a rentabilidade futura de uma companhia. Outro problema, e talvez o maior deles, é que o arcabouço regulatório não pára de mudar e a intervenção do governo é normalmente o primeiro recurso das autoridades em relação a qualquer problema que os desagrade.

Os investidores fundamentalistas usam como base estimativas de valor econômico de longo prazo, enquanto especuladores apostam em mudanças de curto prazo na oferta e demanda. A falta de informação confiável e regras claras de comportamento tornam impossível para um investidor fazer estimativas confiáveis de potencial lucratividade a longo prazo. É muito melhor tentar antecipar o que vão fazer os reguladores, altos funcionários ou funcionários locais, gerentes ou 'insiders'. Isso significa que os investidores podem ser bem-sucedidos como especuladores, não como fundamentalistas.

Valor: O senhor afirma que os altos preços de ações de bancos chineses, que têm créditos podres em maior volume que seu capital e portanto são insolventes, representam apenas uma aposta no crescimento futuro da economia. Esse fator ajudou a derrubar o mercado?

Pettis: O preço altíssimo das ações dos bancos é parte da lógica dos mercados chineses. Não deveria ser uma surpresa que grandes bancos insolventes numa economia que está passando por grandes reformas conseguem altos preços nos mercados. Essas ações são a melhor maneira de apostar no sucesso das reformas e limitar o risco de fracasso. É como uma opção de compra sobre a economia.

Isso ocorreu em vários países latino-americanos na década de 90, na Rússia e na Europa do Leste. Num mercado muito volátil e especulativo, os investidores pagam caro para comprar perspectivas de crescimento e limitar seu risco de perda. As ações de bancos insolventes são freqüentemente a maneira mais 'pura' de fazer isso. Claro que essas ações, que são como opções com preço de exercício muito diferente do de mercado, são extremamente voláteis.

Valor: Por que o senhor acha que investidores em todo mundo reagiram com pânico? O fato de que esses mercados são semelhantes a cassinos já não era conhecido? Por que então deveria afetar mercados nos EUA, Europa e América Latina?

Pettis: Acho que o momento em que isso ocorreu fez com que as pessoas estabelecessem uma relação de causa entre os dois eventos, quando realmente não havia nenhuma. Na minha opinião, o 'crash' do mercado chinês pode ter tido algum impacto nos mercados globais porque aparentemente foi inesperado. Para investidores que não sabem que não há relação entre os mercados chineses e globais, ou entre os mercados chineses e a economia real do país, um 'crash' tão espetacular num país sobre o qual têm lido tanto pode ter causado um aumento no nervosismo.

Mas qualquer um que olhasse com mais atenção veria que não havia realmente uma conexão. Acredito que a causa real do 'crash' global é o excesso de alavancagem nos mercados internacionais, o que os deixou incrivelmente suscetíveis a mudanças no comportamento do consumidor americano.

Quando o Greenspan [Alan Greenspan, ex-presidente do Federal Reserve] fez comentários pessimistas sobre a economia americana, e ao mesmo tempo os preços de energia e metais subiram, foi um sinal para que vários mercados, especialmente asiáticos, desabassem. É bom notar que os mercados chineses no dia seguinte subiram 3%, enquanto o resto do mundo continuou caindo.

Valor: A causa real da crise mundial nas bolsas está nos Estados Unidos, mais do que na China?

Pettis: Acredito que sim. Na China não há o efeito de perda de riqueza porque o mercado acionário é muito pequeno em relação à economia. A propriedade de ações é concentrada entre os ricos, então um crash no mercado quase não afeta a economia real. Também não há possibilidade de contágio porque não existem participações cruzadas. Os estrangeiros não podem investir nos mercados chineses e os chineses não investem no exterior. É um erro ver a queda da bolsa da China como a causa do crash global- o que aliás é bom, porque espero muito mais volatilidade na China nos próximos anos. Espero um mercado de grande vitalidade- a bolsa deve subir de 20% a 30% este ano- mas ao mesmo tempo volátil e até perigoso.