Título: Sócio número 1
Autor: Xiaoqi, Qiu
Fonte: Correio Braziliense, 17/12/2010, Mundo, p. 20

Entrevista: Qiu Xiaoqi

DIPLOMACIA DE LULA A DILMA Embaixador da China

Depois de ultrapassarem os EUA e se tornarem os maiores parceiros comerciais do Brasil, chineses miram em investimentos

Isabel Fleck

Abril de 2009. Pela primeira vez, a China ultrapassa os Estados Unidos no intercâmbio comercial com o Brasil, de quem se torna o principal parceiro. O avanço nas exportações e importações entre os dois países, consolidado de vez em 2010 ¿ só até novembro, as trocas comerciais já tinham chegado a US$ 51,5 bilhões, contra apenas US$ 41,8 bilhões com os EUA ¿, foi um marco histórico na relação entre China e Brasil, pelo qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva receberá sempre os créditos. Mas, apesar do nível de proximidade alcançado, Lula deixará o poder em dívida com Pequim: o compromisso assumido em 2004, durante visita do colega Hu Jintao, de reconhecer a China como economia de mercado, deverá ficar para a sucessora, Dilma Rousseff.

Entretanto, depois de seis anos de espera em Pequim, o embaixador chinês em Brasília, Qiu Xiaoqi, responde de maneira diplomática, sem críticas, ao ser questionado sobre a promessa não cumprida. ¿Esperamos que isso se concretize o mais rápido possível¿, limita-se a responder, em entrevista ao Correio. Ele, no entanto, se diz ¿totalmente seguro¿ de que no próximo governo as relações bilaterais ¿ em todos os campos ¿ vão continuar se desenvolvendo ¿muito rápido e a passos muito firmes¿. ¿Manter boas relações com a China é um consenso para toda a sociedade brasileira, sem importar os partidos políticos e os diferentes atores sociais. (¿) Vamos, seguramente, manter boas relações políticas, e o comércio bilateral, a cooperação econômica, o investimento recíproco e o intercâmbio cultural e pessoal devem aumentar¿, afirmou.

O embaixador disse ainda que uma maior presença chinesa no Brasil não deve ser vista como uma ameaça pelos empresários brasileiros. ¿O desenvolvimento rápido da economia chinesa é uma grande oportunidade para o Brasil e para as empresas brasileiras. Se não precisássemos, se não houvesse essa necessidade recíproca, então por que (o comércio) se desenvolveria tão rápido?¿, pontuou. A questão está intimamente ligada ao reconhecimento da China como economia de mercado, uma vez que, tomada essa decisão, o Brasil teria menos formas de restringir a aplicação de medidas de defesa comercial contra produtos chineses.

Qiu preferiu também não criticar a decisão do governo brasileiro de enviar representantes à entrega do Nobel da Paz ao dissidente chinês Liu Xiaobo, na última semana, apesar dos pedidos de Pequim em contrário. Mas não escondeu o descontentamento: ¿O senhor Liu Xiaobo é um criminoso condenado por crimes contra o Estado chinês, por isso a entrega do Nobel da Paz a ele é uma farsa política, que tem objetivo de afetar a estabilidade política da China, de intervir nos nossos assuntos internos¿.

No último ano, a China tornou-se o primeiro parceiro comercial do Brasil. Qual a importância dessa conquista para o governo chinês? Sempre existiram boas relações bilaterais entre a China e o Brasil, desde o estabelecimento das relações diplomáticas, em 1974, mas nos últimos oito anos a cooperação entre os dois países avançou rapidamente. Esse foi o período de desenvolvimento mais rápido na área do comércio, da cooperação econômica e do investimento, na história dos dois países. A taxa de crescimento anual do comércio nos anos recentes tem sido perto de 50% ou superior. E, entre março e abril de 2009, ultrapassamos o volume total do comércio entre Brasil e EUA. Agora, a China é o primeiro parceiro comercial do Brasil e o primeiro destino de exportações brasileiras. É uma situação muito interessante. No campo do investimento, até o ano passado, não tínhamos alcançado muito ¿ o investimento acumulado chegou apenas a US$ 500 milhões. Mas neste ano a situação mudou: a China se tornou o principal país de origem do investimento no Brasil, e muitas empresas chinesas estão entrando no Brasil para investir não só em campos tradicionais, como a mineração. Os chineses estão de olho na indústria manufaturada, na agricultura, na exportação de petróleo e na fabricação de automóveis de marcas chinesas aqui. Isso me parece uma tendência muito positiva, porque demonstra que existe uma ampla complementaridade econômica entre nossos dois países.

Apesar da intensidade na área de comércio e investimentos, o Brasil ainda não reconheceu a China como uma economia de mercado. Essa foi uma falha do governo Lula, na visão da China? Nos últimos anos, a China tem feito muitos esforços para construir um sistema de economia de mercado, e temos conquistado muitos sucessos. Hoje, a economia da China funciona como qualquer economia de mercado. Essa é uma realidade, e vejo que a maioria dos países do mundo reconhece essa realidade. Em 2004, durante a visita do presidente Hu Jintao, o governo brasileiro se comprometeu a reconhecer a economia da China como economia de mercado. Esperamos que isso se concretize o mais rápido possível.

No governo de Dilma? Só esperamos que a decisão se concretize.

E no campo político? As relações acompanharam o avanço da área de econômica? Na área política, há hoje um nível muito alto de confiança recíproca. Os dois chefes de Estado se visitaram mutuamente em duas ocasiões e, em encontros multilaterais, os dois presidentes sempre se reúnem com muita frequência. Sendo países em via de desenvolvimento, China e Brasil têm posições e visões muito similares, ou mesmo iguais, sobre uma ampla agenda de assuntos internacionais da atualidade. Nós acreditamos que o mundo futuro tem de ser multipolar, que todos os países devem ser iguais e que as relações têm de ser democráticas. Acreditamos que o sistema internacional tem de ser reformado nos campos econômico, financeiro e político. E os nossos países têm trabalhado conjuntamente para impulsionar esse processo. Sempre tivemos uma coordenação muito estreita no marco das Nações Unidas, e, a partir da crise financeira internacional, também no G-20. Essa coordenação se estendeu à questão de mudanças climáticas, à plataforma mais importante dos países emergentes, os Brics, e também à questão comercial, na plataforma da OMC (Organização Mundial do Comércio). E isso favorece não somente os interesses fundamentais dos nossos dois países, mas também dos países em via de desenvolvimento.

O governo brasileiro, no entanto, enviou representantes à entrega do Nobel da Paz, concedido a Liu Xiaobo, apesar da oposição da China ao prêmio. Isso demonstra que o Brasil não está disposto a apoiar algumas posturas políticas do governo chinês? O senhor Liu Xiaobo é um criminoso condenado por crimes contra o Estado chinês, por isso a entrega do Nobel de Paz a ele é uma farsa política, que tem o objetivo de afetar a estabilidade política da China, de intervir nos nossos assuntos internos. É muito interessante que umas poucas pessoas queriam questionar o sistema político da China, o caminho que o povo chinês escolheu e no qual conseguiu muito sucesso nos últimos 30 anos.

Mas como o governo chinês recebeu a postura do Brasil? É um equívoco apoiar essa escolha? Nós nos opomos à outorga desse prêmio a um criminoso da China. Essa é a posição da China.

O senhor acredita que, durante o mandato de Dilma, o crescimento do comércio e a proximidade política vão continuar? Manter boas relações com a China é um consenso para toda a sociedade brasileira, sem importar os partidos políticos e os diferentes atores sociais. Estou totalmente seguro de que, nos próximos anos, as relações entre Brasil e China vão continuar se desenvolvendo muito rápido, e a passos muito firmes. Vamos, seguramente, manter boas relações políticas, e o comércio bilateral, a cooperação econômica, o investimento recíproco e o intercâmbio cultural e pessoal devem aumentar. Sobre isso eu não tenho nenhuma dúvida. Tenho uma visão muito otimista sobre o futuro das nossas relações. O governo e todo o povo chinês estão dispostos a fazer esforços ainda maiores para o desenvolvimento dos nossos dois países.

Mas a pressão de empresas brasileiras contra uma maior presença chinesa no mercado nacional pode atrapalhar esse avanço? Em primeiro lugar, eu não acredito que a economia chinesa seja uma ameaça para a brasileira. Pelo contrário, o desenvolvimento rápido da economia chinesa é uma grande oportunidade para o Brasil e para as empresas brasileiras. É só ver por que aumentou tão rápido o comércio: porque nós precisamos. Se não precisássemos, se não houvesse essa necessidade recíproca, então por que se desenvolveria tão rápido? Então, alguns comentários negativos sobre a presença econômica e comercial da China no Brasil não representam o ponto de vista da maioria da sociedade brasileira, que conhece os nossos produtos. E eu convido essas pessoas que não entendem bem as nossas relações econômicas a visitarem a China, para ter um conhecimento mais profundo sobre o caráter e a realidade dessas relações econômicas.

Em quais áreas da economia brasileira a China pretende investir? Em todas. As oportunidades de investimento são muito amplas: agricultura, indústria, exploração de recursos naturais, petróleo, minérios. Tudo de que precisamos a economia brasileira tem. O mercado da China também está aberto às empresas brasileiras. Muitas empresas estrangeiras encontram oportunidades na China. Os empresários brasileiros também são muito inteligentes, muito competitivos, e podem encontrar opções de cooperação.

Para a China, que realizou as Olimpíadas de Pequim, em 2008, a realização das Olimpíadas e da Copa de Mundo no Brasil nos próximos anos abre possibilidades de parceria e investimentos? As Olimpíadas do Rio, em 2016, e a Copa, em 2014, serão muito importantes para o Brasil. Ao realizar eventos de nível mundial, o país dará um grande salto qualitativo na economia e na sua influência internacional. Há dois anos, realizamos com muito sucesso as Olimpíadas de Pequim, e acumulamos muitas experiências que acredito serem positivas e necessárias para o Brasil. Estamos dispostos a cooperar. Em termos de investimento, podemos ajudar em muitos campos, como na construção de infraestrutura, estádios olímpicos, ginásios, metrô, vila olímpica. Podemos compartilhar nossa experiência na organização das competições, na construção do sistema de informática e também na segurança, que é o mais importante para qualquer evento mundial. Já começamos a ter alguns intercâmbios e, até 2016, seguramente isso vai se desenvolver ainda mais.

Essa será uma oportunidade também para o Brasil atrair mais turistas chineses? Já temos avançado muito nessa área: cada dia mais chineses vêm ao Brasil como turistas, e para assistir a diversas atividades culturais e acadêmicas. O número de brasileiros que visitam a China também está aumentando rapidamente. E isso é muito importante, porque o entendimento entre nossos dois povos é a base fundamental para a cooperação.

A China acredita que o Brasil deve também se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança? Sempre acreditamos que uma reforma da ONU é necessária e importante. Sobretudo, vai ampliar a representatividade. Mas essa reforma tem de ser feita passo a passo, aos poucos, e nesse processo os membros da ONU têm de buscar um consenso. Têm de trabalhar sobre uma base de unidade, de entendimento recíproco. A China espera que o Brasil, como um país importante, em via de desenvolvimento, desempenhe um papel mais importante nos assuntos da ONU e nos assuntos internacionais.

Brasil, China, Rússia e Índia foram reunidos como os Brics pelas semelhanças no estágio de desenvolvimento econômico. Mas esse grupo pode se tornar, no futuro, uma plataforma para discussões e posicionamentos políticos também? Os Brics são uma plataforma importante da cooperação entre os nossos quatro países emergentes, que agora desempenham o papel de um dos principais motores para a economia mundial. Então, a cooperação econômica sempre é um tema muito importante dentro dessa plataforma. Mas discutimos alguns temas importantes da nossa realidade atual, e estamos em um processo de desenvolvimento.