Título: Palhaços estão prontos para governar, diz Dario Fo
Autor: Saccomandi, Humberto
Fonte: Valor Econômico, 12/03/2013, Internacional, p. A17

O Prêmio Nobel italiano Dario Fo, que foi um dos ativistas mais importantes da campanha de Beppe Grillo na Itália

Os palhaços têm de ser respeitados, pois com frequência são os portadores da verdade. E isso vale para o comediante Beppe Grillo, cujo Movimento 5 Estrelas foi o partido mais votado nas eleições parlamentares de fevereiro, o que chocou muita gente na Itália, assustou os parceiros europeus e mexeu com os mercados internacionais. É o que diz o escritor e ator italiano Dario Fo, Nobel de Literatura em 1997 e que se autoconsidera um "clown", um palhaço.

Com quase 87 anos, Fo abandonou a esquerda, por quem diz ter sempre votado, e apoiou Grillo, que afirma não ser nem de esquerda nem de direita. Isso lhe custou um amigável confronto familiar, já que seu filho Jacopo manteve o apoio público ao Partido Democrático (PD), herdeiro do antigo Partido Comunista Italiano.

Fo não só apoiou verbalmente, mas participou de comícios com Grillo, o defendeu dos fortes ataques de quase toda a mídia e a intelectualidade italiana, esteve em reuniões, deu pitaco, fez críticas, em resumo, foi um dos ativistas mais importantes da campanha eleitoral do comediante.

Segundo ele, a acusação pejorativa de palhaço feita a Grillo pela revista britânica "The Economist" e por um político alemão é injusta e reflete a ignorância da história e do momento atual da Itália. Os italianos estão "desesperados", diz Fo, com a crise e com a falta de perspectivas do país, e Grillo conseguiu falar a essa gente. "Eu me considero um clown", disse Fo, usando o termo em inglês, comum na Itália. "Sou alguém a ser descartado ou alguém a ser levado em conta na cultura atual?"

O autor de "Mistério Bufo" e "Morte Acidental de um Anarquista" é um indignado, como Grillo e como milhões de europeus que sofrem as consequências da recessão e das políticas de austeridade na região. Para Fo, o sucesso eleitoral do M5E, que criou um impasse ainda não resolvido na formação do próximo governo italiano, é um alerta para a Europa e para o mundo. "É o início de uma revolução", disse ele num vídeo postado no blog de Grillo.

Essa indignação transparece ao longo da entrevista ao Valor, feita por telefone. Em várias respostas, Fo deixa a questão e se deixa levar por um fluxo de indignação, difícil até de acompanhar, tanto mais de interromper. Parecia estar interpretando um dos seus personagens de "Mistério Buffo". Ao final, ele pede para parar. Diz estar cansado de falar tão rapidamente. Ou de se indignar?

Fo acredita que Grillo e o seu M5E são mais parte da solução que do problema e que estão prontos para governar, se for o caso, do que muita gente discorda. A resposta virá nos próximos meses. Leia abaixo a entrevista.

"Eu me considero um "clown", e faço espetáculo político. Sou alguém a ser descartado ou devo ser levado em conta?"

Valor: Os estrangeiros custam a entender o que está acontecendo com a Itália. O que acontece?

Dario Fo: Aconteceu o fim do mundo... [risos]. É a primeira vez que um partido, um grupo, que se apresenta novo, sem uma progressão, sem recursos, autônomo, contra todos e esnobado por todos, consegue chegar à frente nas eleições.

Valor: E o que se deve esperar agora?

Fo: Agora espera-se que se abra uma estrada percorrível para realizar aquilo que é o programa de quem venceu. Pois quem venceu, de fato, digam o que quiserem, foi esse grupo. Se no plano da geometria venceu Bersani [Pier Luigi Bersani, líder do PD, cuja coligação teve mais votos], seguido da direita, de fato Bersani não consegue governar sem Grillo. Grillo é a chave de toda essa situação. Sem passar por ele, será preciso voltar às urnas e votar novamente. Isso deixa claro que aconteceu o que ninguém esperava, o que os outros não esperavam.

Valor: O sr. mudou de voto depois de uma vida inteira. Por quê?

Fo: Encontrei-me diante de uma situação nova. E entendi que essa era uma situação importante. Junto comigo, quase um terço dos italianos fizeram a mesma coisa. Disseram a si mesmos: estamos desesperados, tentemos, vejamos se esse grupo consegue realizar o que tem em mente.

Valor: Desesperados por que?

Fo: Porque estamos numa crise mundial. Eles foram f...... até pela última tentativa, essa dos técnicos [refere-se ao governo atual, liderado pelo tecnocrata Mario Monti]. Esses técnicos disseram que precisavam recolher mais impostos e que o fariam de modo que todos pagassem, de uma maneira justa, correta, com uma progressão de acordo com o que as pessoas ganham. E, em vez disso, foi uma sacanagem. Quem pagou esses impostos foram só os pobres. Os ricos enriqueceram ainda mais. Foi uma piada, uma piada. Eles [o governo] disseram que não ocorreu como esperavam. Não é verdade, isso foi organizado sabendo muito bem que levaria ao desespero, à falta de trabalho, a pessoas perdendo a sua casa, aos jovens que precisam deixar a escola para sobreviver, porque não têm os meios, não têm o dinheiro para continuar a estudar. Foi um governo que disse que estávamos em ações de paz no exterior, quando na verdade estamos numa guerra, que tem por trás o petróleo, os interesses das grandes potências. Poderíamos seguir falando por uma hora.

Valor: No exterior chamaram Grillo de "clown"...

Fo: É preciso ver o que é o "clown". Vejamos um pouco a história da Itália. São Francisco dizia ser um "giullare", que é um tipo de palhaço. O que é o "clown"? É normalmente aquele que diz as coisas na forma de sátira, do grotesco, mas que permite entender a verdade da situação. Na Grécia antiga, onde se começaram a fazer comédias satíricas e grotescas, era mais fácil para os gregos entender o que estava por trás de um movimento político, de uma decisão ou de uma guerra ouvindo o "clown" do que ouvindo os historiadores. Com o "clown" eles conseguiam entender as coisas. Com os historiadores, não, pois a história era truncada e só pessoas de um certo círculo cultural conseguiam entender aquela linguagem. Assim, será que a nossa origem cultural é de se jogar fora? O "clown" tem uma cultura ou é apenas um bufão, na linguagem comum? Eu me considero um "clown", e faço espetáculo político há muitos anos. Fiz mais de 80 comédias com temas assim, que são apresentadas ainda hoje. Eu sou alguém a ser descartado ou alguém a ser levado em conta na cultura atual?

"Aconteceu o fim do mundo. Pela primeira vez, um grupo sem recursos, esnobado por todos, chega à frente na eleição"

Valor: Então o sr...

Fo: Eu lhe fiz uma pergunta. Estou falando com uma pessoa viva, não com alguém que somente toma notas. Quero uma resposta sua. Sou digno se ser levado em consideração?

Valor: Acho que o sr. é absolutamente digno de ser levado em consideração, e é por isso que o estou entrevistando.

Fo: E Grillo também precisa ser levado em consideração, pois consegue dialogar, falar, se fazer entender por uma população enorme, que se aborrece, por sua vez, com aquilo que escuta dos dirigentes políticos que mantém a Itália em crise há anos.

Valor: O sr. acha então que esses estrangeiros que chamaram Grillo de "clown" têm dificuldade de entender as dificuldades pelas quais passa a Itália?

Fo: É uma ignorância. Ignorância em relação ao que é a Itália. Da Itália conhecem apenas o espaguete, a fissura pelo sexo e pelas mulheres, a esperteza, a astúcia, a máfia. Não sabem, não se lembrem, que houve o humanismo, o renascimento, de todos os grandes cientistas, pensadores italianos. Há Ruzante [descrito por Fo como o maior autor teatral da Europa no renascimento], que ensinou a comédia a todos, inclusive a Shakespeare, para não falar de Molière. Todos aprenderam com ele, mas as pessoas não sabem. Se você perguntar, todos conhecem Shakespeare, Molière, mas não conhecem Ruzante, que foi o mestre de todos. É preciso começar a dizer essas coisas. Assim, há o "clown" obsceno, inútil, brincalhão, de um lado, e aquele culto, ligado aos interesses do povo. Não podemos esquecer quantos deles não acabaram queimados na fogueira, e não porque faziam rir, mas porque no riso havia um discurso político.

Valor: Mas uma coisa é discutir, criticar, fazer a sátira, muitas vezes com razão. Outra coisa é apresentar projetos de lei no Parlamento. O sr. acha que Grillo e seu movimento estão prontos para esse passo?

Fo: Sim, claro que estão prontos. Eles precisam agora encontrar um modo claro de participação, que não corra o risco de ser sufocado pela mesmice do bla-bla-blá dos políticos italianos. Nas últimas décadas foi criada por aqui uma quantidade enorme de leis, que existem em todo o mundo, em todas as culturas, sobre os problemas da tutela da cultura, do direito ao trabalho, do direito de ser tratado num hospital, sobre as universidades, mas que estão paradas, não se aplicam. Não falemos daquelas ligadas ao Exército, à guerra. Um dos primeiros artigos da nossa Constituição diz que Itália repudia a guerra, que não faremos guerra. Mas, "cazzo", estamos em guerra há não sei quantos anos. E não só. Nós compramos máquinas de guerra, as construímos e vendemos para o mundo, para ditadores da África, fazemos comércio de máquinas de guerra. É isso que precisa ser lembrado. Há um modo de contar as coisas, e um modo de ser e de fazer. Depois disso, ok, somos corruptos, roubamos, tomamos o dinheiro dos pobres, enganamos as pessoas, temos bancos que fazem apostas ignóbeis.

Há uma coisa que é pouco conhecida, que são as salas de jogos de azar clandestinas. O giro de dinheiro nessas salar é maior que o da Fiat, coisa de centenas de bilhões de euros. Houve iniciativas para acabar com isso, essa coisa infame na qual o Estado é o croupier que explora a ignorância e o desespero dos pobres, pois o dinheiro que se joga é dos pobres, não o dos grandes industrialistas. Quando houve votações para acabar com essa catástrofe imoral, a esquerda votou contra, contra desfazer isso. Você entende, é um contrassenso. Essa organização, do jogo clandestino, deve ao Estado italiano € 98 bilhões, que foram roubados dos cidadãos, estão nas mãos dos organizadores e não vão ao Estado. Pense o que se poderia fazer com esse dinheiro. Se eu fizer a lista de todo o dinheiro que o Estado deveria receber ou poderia economizar... Todos os caças [refere-se a um contrato de compra de aviões F-35 americanos] que nós compramos, são bilhões.

Valor: A mensagem então para o exterior é que há uma mudança na Itália e se deve estar otimista?

Fo: A Itália corre o risco de perder uma ocasião extraordinária para mudar as coisas. E não só para a Itália, mas também para a Europa. Isso que ocorreu na Itália é um sinal não só de caráter periférico ou nacional, mas é mundial.