Título: Desigualdade, pobreza e adjacências
Autor: Averbug, Marcello
Fonte: Valor Econômico, 23/03/2007, Opinião, p. A18

Dados já amplamente divulgados indicam que, desde 1997 e sobre tudo a partir de 2002, atenuou-se a desigualdade social no Brasil e declinou o número de famílias abaixo da linha de pobreza.

Independente do quão espetaculares ou não sejam os números que dimensionam esse processo, é fundamental analisar os fatores que o induziram, especialmente ao longo do governo Lula, auto-vangloriado como campeão da justiça social. Ou seja, caberia indagar: o caminho seguido nos últimos quatro anos é o mais adequado para promover desconcentração de renda e diminuição da pobreza? Deve ser mantido no segundo mandato Lula?

Responder a essas perguntas implica, de início, identificar os fatores responsáveis pelo fenômeno. Usando como fonte o documento Ipea "A queda recente da desigualdade no Brasil" (2006) e o texto do professor Claudio Salm, do Instituto de Economia da UFRJ, "Sobre a recente queda da desigualdade de renda no Brasil: uma leitura crítica" (2006), percebem-se como mais relevantes os seguintes fatores: a) transferências governamentais, em especial o programa Bolsa Família; b) baixos índices de inflação, permitindo maior proteção ao valor dos salários; c) incremento real do salário mínimo; d) barateamento relativo da cesta básica e de outros produtos de consumo popular; e) diminuição das disparidades salariais entre as regiões metropolitanas e os municípios pequenos do interior.

Analisando a natureza desses fatores, chega-se à conclusão de que alguns deles atribuem vulnerabilidade à queda da iniqüidade e da pobreza, enquanto que outros não são atribuíveis a iniciativas de governo. As situações de vulnerabilidade advêm dos seguintes pontos: a) os programas assistenciais estão sujeitos a definharem por escassez de recursos, ineficiência gerencial, ou decisão política; c) o incremento no valor real do salário mínimo não é imune a retrocessos; d) qualquer alta nos índices de inflação imediatamente corroe os salários.

Os fatores não atribuíveis a iniciativas de governo desfrutam de maior estabilidade, pois se originam no mercado. Por isso, devemos louvar os citados barateamento da cesta básica e diminuição das disparidades salariais em termos de localização do trabalhador. No entanto, repito, esses acontecimentos refletem evolução espontânea que nunca figurou entre prioridades de presidentes da República.

Qualquer análise retrospectiva revela que jamais foi feito algo neste país visando um processo de desconcentração de renda autêntico, estável e pouco condicionado pelo ritmo de crescimento da economia. Aliás, já atingiu o máximo da monotonia o discurso de que redistribuir é mais fácil quando há aumento do PIB. É óbvio. Tudo na vida é mais fácil quando há prosperidade, até mesmo a manutenção de regime político autoritário. O grande mérito seria amenizar os contrastes sociais sob baixas taxas de expansão econômica. Na verdade, a opção inteligente consiste em usar o enfrentamento da desigualdade como fonte propulsora do crescimento.

-------------------------------------------------------------------------------- O barateamento da cesta básica e diminuição das disparidades salariais em termos de localização do trabalhador são louváveis --------------------------------------------------------------------------------

Processos distributivos menos vulneráveis a recaídas são aqueles atados a mudanças na estrutura produtiva do país. Isto é, resultantes de investimentos públicos e privados propulsores da produção e produtividade dos setores ofertantes de bens e serviços que pesam mais no orçamento das famílias de menor renda, ou lhes são inacessíveis apesar de essenciais: alimentação, saúde, educação, lazer, habitação, transporte público, saneamento, vestuário, segurança pública e capacitação profissional destinada a elevar a produtividade do trabalho.

Em paralelo, outro conjunto de ações ocorreria nas áreas tributária, salarial, creditícia e de emprego, conforme critérios já consagrados pela literatura econômica. Na área salarial, um dos objetivos básicos seria aprimorar a sintonia entre o incremento da produtividade do trabalho e o da remuneração da mão-de-obra. Entre as ações referentes a emprego, inclui-se a flexibilização da legislação trabalhista.

Haverá aumento real na renda das famílias menos favorecidas quando, por exemplo: a) receberem atendimento médico amplo, rápido, eficiente, além de gratuito; b) desfrutarem de acesso a ensino de alta qualidade; c) acederem a fontes de microcrédito para desenvolver miniempreendimentos; d) conseguirem moradia digna, mediante programas habitacionais sensíveis às suas restrições financeiras; e) receberem serviços de saneamento; f) obtiverem transporte público confortável, rápido e barato; g) beneficiarem-se do barateamento do custo da alimentação; h) lograrem adquirir vestuário e utensílios domésticos de maior durabilidade a preços vantajosos.

E as fontes de recursos para uma política desse gênero? A resposta encontra-se entre as seguintes alternativas: a) redesenho do gasto público, permitindo maior volume de investimento estatal relacionado com a eqüidade; b) combate radical à corrupção, canalizando o montante poupado para programas distributivos; c) combate à sonegação fiscal; d) ampla reforma do Estado; e) retomada das privatizações, liberando o Estado para tarefas onde seu papel é insubstituível, tais como o de promover eqüidade social; f) engajamento do setor privado como co-patrocinador de investimentos inerentes à desconcentração de renda; g) redirecionamento das operações junto ao Banco Mundial e BID, ampliando apoio aos projetos de teor distributivo.

O caminho aqui defendido estimula a mobilidade social dos mais pobres, em contraste com os programas assistenciais, tipo Bolsa Família, que os mantêm sob dependência infrutífera. Esses programas servem para situações de emergência ou como complemento transitório a políticas de combate à pobreza. Mas nunca com o status de vedete de tais políticas e símbolo da luta pela redistribuição de renda.

Marcello Averbug é ex-chefe dos Departamentos de Planejamento e de Indústria Naval do BNDES, ex-economista do BID, professor da UFF de 1970 a 2001, é consultor em Washington. E-mail: maverbug@yahoo.com