Título: Reforma financeira urgente
Autor: Castro, Paulo Rabello de
Fonte: Valor Econômico, 16/03/2007, Opinião, p. A18

A recente manipulação na fórmula do recolhimento da TR, há pouco decidida pelo sombrio e descaracterizado Conselho Monetário Nacional, nos traz de volta o fantasma dos truques e roubadas financeiras dos tempos da inflação galopante. Felizmente, os olhos da sociedade não deixaram a questão passar batida.

A matéria exige profunda reflexão. Em recente mesa redonda, promovida pela Fecomercio - SP, para debater as insuficiências do PAC como programa de efetiva aceleração de nosso minguado crescimento, ficou patente, entre tantas razões, que o atraso do país está fincado no nosso modelo de "rentismo estatogênico", que preserva os juros altos da minoria através de uma estrutura financeira absolutamente arcaica de alocação de poupanças e de distribuição da moeda e do crédito.

O último avanço sensível do Brasil nesta área foi ainda em meados dos anos 60, portanto, há mais de quarenta anos, com um conjunto de leis arquitetadas por Octávio Bulhões e Roberto Campos. Fizeram parte deste conjunto de medidas tanto a Lei 4.595, de dezembro de 1964, conhecida como a Lei do Sistema Financeiro, que dispunha sobre o funcionamento das instituições financeiras, bancárias e de crédito, e que posteriormente sofreu ajustes através da Lei 5.362, de novembro de 1967 (com a economia, neste momento, já sob a regência de Antônio Delfim Netto), quanto, conjuntamente à primeira, a Lei 4.728, de julho de 1965, que ficou sendo chamada de Lei do Mercado de Capitais, dispondo sobre o funcionamento e tomando medidas para o desenvolvimento do mesmo.

Ali, naquele momento, se organizaram instituições como o Banco Central, o Conselho Monetário, o Sistema Financeiro Nacional, além do Sistema de Poupança e Empréstimo ("cadernetas"), o qual deflagrou a enorme onda de construções residenciais através do Sistema Financeiro da Habitação. O FGTS, outra grande inovação dos anos 60 - poupança de trabalhadores, depositada mensalmente pelos patrões - não só substituiu a rígida e atrapalhada "estabilidade no emprego após dez anos de serviço", como criou a grande âncora social em caso de desemprego do cidadão.

O excesso de conservadorismo nos dificulta enxergar o quanto o sistema monetário-financeiro dos anos 60 foi fraudado e deturpado por anos e anos de voragem inflacionária e, na última década, pela incrível tsunami de sobrecarga de juros, aceita por governos sucessivos, sobre a dívida pública interna (algo na faixa de meio trilhão de reais de sobrecarga, para ficar num cálculo conservador).

Neste último período, que, não por acaso, coincide com a perda absoluta de nosso dinamismo econômico, foi aparecendo, felizmente, um sistema paralelo de instrumentos financeiros - fundos, cédulas, notas comerciais, "novo mercado" - para desobstruir a captura de recursos para as empresas. O lado do tomador foi em parte modernizado, embora o lado do poupador, não. O sistema de captura de fundos para servir ao desenvolvimento privado permanece fortemente regulado, quando não estatizado. Dezenas de milhões de brasileiros, que poderiam ter acesso a uma poupança previdenciária voluntária e rentável não têm essa chance de construir o futuro. Não precisamos ir longe. As regras de organização do FGTS e sua forma de remuneração são totalmente desajustadas aos interesses dos trabalhadores. O governo ainda anuncia, agora, pretender tomar parte desses recursos através de investimentos em infra-estrutura, de cujo retorno, os donos do FGTS não compartilharão.

-------------------------------------------------------------------------------- O Estado nacional preferiu agarrar-se ao discurso da retomada do crescimento, sem mencionar uma radical reforma financeira --------------------------------------------------------------------------------

A Previdência Social obrigatória, de absurda alíquota contributiva, é outra aberração financeira. O tamanho da alíquota praticamente impede que o trabalhador possa construir seu próprio pecúlio, ao mesmo tempo em que o obriga a verter sua poupança para o INSS, que não acumula fundos, tornando o futuro do trabalhador totalmente incerto.

O resultado trágico desse imenso engodo de poupança popular pode ser medido em trilhões (trilhões mesmo) de reais, em termos de rendas e empregos perdidos. O Brasil, que era a oitava, agora está por volta da décima quinta economia do mundo - e, pior, com uma avassaladora concentração de renda, que comeu mais de dez pontos de porcentagem dos ganhos do trabalho no bolo nacional, (caiu de 50%, na década de 60, para pouco mais de 30%, hoje). Não é preciso dizer com quem ficou o maior bocado: as rendas financeiras.

O Estado nacional, endividado e mediocrizado, não quis enfrentar os interesses que perpetuam nosso atraso financeiro. Saiu pela tangente, preferindo agarrar-se ao discurso da retomada do crescimento, sem, ao menos, mencionar a centralidade de uma radical reforma financeira, como condição sine qua non ao reingresso do país ao circuito das economias "normais".

Pois não é normal se manter o maior recolhimento do mundo sobre depósitos bancários. Nem as maiores alíquotas de recolhimento à Previdência Social, suportando gastos campeões com aposentadorias, da ordem de 12% do PIB, conjugados aos mais rígidos esquemas de poupança compulsória e mal-remunerada, através do FGTS e Pis-Pasep, ou ainda, bancos públicos lastreados por fundos de trabalhadores (BNDES - FAT) e esquemas de juros calculados por arbitrária decisão de governo (como TR, TJLP etc) e, sobretudo, um Banco Central sem efetiva subordinação a um Conselho Monetário, hoje reduzido a apenas três membros, todos do governo, que quase sempre desconsideram, em suas deliberações, o que pensam as forças produtivas do país.

A reforma financeira é, portanto, antes mesmo da tributária, da trabalhista ou da previdenciária, a pedra de toque que hoje falta no diagnóstico das raízes de nosso crescimento perdido.

Paulo Rabello de Castro é diretor da RC Consultores, "chairman" da SR Rating e vice-presidente Executivo do Instituto Atlântico.