Título: Desonerar não impede inflação, diz economista do BNY Mellon
Autor: Bittencourt, Angela
Fonte: Valor Econômico, 13/03/2013, Brasil, p. A3

A carga tributária no Brasil é enorme, um reconhecido fator de entrave aos investimentos e precisa ser reduzida porque afeta a competitividade da economia como um todo. Nada disso justifica, porém, o uso de desonerações como instrumento de controle da inflação, alerta Solange Srour, economista-chefe do BNY Mellon ARX Investimentos, em entrevista ao Valor PRO, serviço de informações em tempo real do Valor.

As desonerações podem baixar alguns preços da economia no curto prazo ou podem melhorar as margens de alguns setores, mas não servem para impedir um aumento geral de preços, na avaliação da economista. A desoneração de tributos em alguns setores é ineficiente e pode ser revertida rapidamente. Esse é o caso da cesta básica. No atual cenário de emprego robusto e renda real em expansão, o benefício da cesta básica é apenas uma mudança de preços relativos que pode ser revertida assim que a demanda reagir ao preço menor. Solange acrescenta que no setor de alimentos o corte de impostos raramente chega a ser totalmente transferido para o consumidor final, por se tratar de um setor muito difuso - conta com inúmeros supermercados e pontos de venda. A seguir, trechos da entrevista:

Valor: O governo defendeu o juro como o instrumento de combate à inflação, mas parece que a presidente Dilma Rousseff abraçou mesmo a política de desoneração. É legítimo o uso das desonerações para conter os preços?

Solange Srour: Sou extremamente favorável às desonerações de impostos na economia, afinal a carga tributária no Brasil é enorme e os impostos altos sempre constituíram um fator de entrave aos investimentos, um verdadeiro gargalo à economia. Entretanto, esse não deve ser um instrumento de controle de inflação. As desonerações servem para baixar alguns preços da economia no curto prazo, ou para melhorar as margens de alguns setores, não servem para impedir um aumento geral de preços. Como se sabe a inflação é um processo de aumento generalizado e não localizado de preços.

Valor: Existe alguma forma de avaliar ou mensurar o efeito das desonerações em abatimento da inflação em pontos percentuais?

Solange: Algumas desonerações têm impactos muito incertos mesmo sendo anunciadas como permanentes. O caso da cesta básica é um deles. Em um primeiro momento pode ser que os preços dos bens desonerados caiam bem, mas o efeito ao longo do tempo dependerá muito da reação da demanda. Afinal de contas, o emprego está robusto e a renda real crescendo bem. O benefício da cesta básica é apenas uma mudança de preços relativos que pode ser revertida assim que a demanda reagir ao preço menor. Outro ponto importante é que no caso de alimentos dificilmente o corte de impostos chega a ser sentido totalmente pelo consumidor final, por se tratar de um setor muito difuso, no qual o controle de preços se torna difícil, ao contrário da desoneração de linha branca e veículos. Já quando as desonerações são temporárias, o impacto de médio prazo tende a ser nulo ou muito pequeno. Tais desonerações não deveriam trazer benefício algum para a inflação na perspectiva que importa para a autoridade monetária (horizonte de atuação mais longo). O IPI de carros é o exemplo mais claro, melhora a inflação nos meses em que vigora a medida e traz aumentos de preços nos meses em que o IPI é reduzido ou eliminado. Tais desonerações funcionam como uma mola, reduzem a inflação temporariamente, mas trazem uma descompressão em algum ponto do tempo.

Valor: É certo que a desoneração tributária é ampla o bastante para conter pressões inflacionárias de A a Z ou assegurar a convergência da inflação para o centro da meta?

Solange: Na minha avaliação, o diagnóstico da inflação alta passa por dois pontos que não são atacados pela política de desoneração. O primeiro é a perda do centro da meta como referência para as expectativas de inflação. Tirando o ano de 2003, nunca tivemos já em março uma expectativa para a inflação do ano perto de 130 pontos básicos acima do centro da meta. Por que as expectativas já começaram o ano tão desancoradas? Uma explicação é que o ponto de partida da inflação deste ano já era alto. A inflação de 2012 encerrou o ano em 5,84%, apesar das várias desonerações anunciadas no ano passado. Em 2012, o ponto de partida também foi alto. A inflação em 2011 fechou em 6,5%, saindo de 5,91% em 2010. Claramente temos um problema de inércia. Inércia não se ataca com desonerações, a menos que estas joguem o nível geral de preços da economia para baixo. Uma desoneração horizontal de todos os bens da economia, inclusive desoneração da oferta, seria muito bem-vinda para reduzir custos e estimular a produção. Mas essa não é a agenda atual, muito menos em vésperas de eleições presidenciais. A outra explicação para as expectativas estarem desancoradas é a perda de confiança da sociedade de que a meta seja 4,5% com desvios para baixo e para cima. Podemos ter várias explicações pontuais que justifiquem uma inflação mais alta em algum momento do tempo, mas explicações pontuais não valem por tanto tempo (desde 2008, com exceção de 2009, ano da crise). Para assegurar a convergência precisamos de fato políticas monetária e fiscal coordenadas visando esse objetivo. Desonerações de alguns produtos não compram a confiança no controle de preços de forma generalizada. Os consumidores sentirão certamente o impacto de preços mais baixos nos supermercados, mas não deixarão de sentir a alta dos serviços, do colégio à manicure.

Valor: Mas há quem acredite no centro da meta? Alguém se lembra que esse centro é de 4,5%?

Solange: Pois é, acredito que parte significante da perda de referência das expectativas está no fato de não cumprirmos o centro da meta por tanto tempo (ou algo mais próximo ao centro). Neste caso, as desonerações também não ajudam. Elas impedem apenas que temporariamente, as expectativas se deteriorem mais, ou ajudam a reduzir a inflação de um determinado período. Não ajudam as expectativas mais longas a ficarem ancoradas por muito tempo. Esse ponto de perda de confiança parece estar sendo bem endereçado agora pelo Banco Central que, a despeito dos resultados baixos de Produto Interno Bruto (PIB), está sinalizando uma alta dos juros. O BC vem comunicando que a inflação nesse patamar e com essa dispersão não é confortável e de forma correta apontado a alta de juros como instrumento para lidar com tal problema. A inflação é sintoma de desequilíbrios que podem e devem ser endereçados pelo Banco Central. Mas cabe obviamente lembrar que a política monetária opera em conjunto com a política fiscal e parafiscal. Esse ponto é relevante para entendermos porque ficamos tanto tempo sem cumprir uma inflação perto do centro da meta e o que devemos esperar de resultados do aperto monetário que estar por vir.

Valor: O Banco Central, além de mostrar desconforto com a inflação, também indicou preocupação com o índice de difusão do IPCA.

Solange: De fato, estamos vendo uma inflação muito dispersa, o que sinaliza que não temos problemas específicos para serem tratados pontualmente por desonerações. A inflação está se acelerando de forma generalizada e uma das principais causas é termos um mercado de trabalho bem aquecido há um bom tempo. Os salários reais crescem acima da produtividade, as empresas tentam segurar margens, dentro do possível, e os preços finais acabam se elevando em algum grau. É simples assim. Se não tivermos um desaquecimento do mercado de trabalho, vai ser difícil não continuarmos a ter pressões de custos e repasse aos bens e serviços finais. Obviamente não se ataca esse problema com desonerações. Eu diria que a desoneração da folha de pagamentos pode até agravar tal problema se na maioria dos casos vier acompanhada de um compromisso das empresas em não dispensar a capacidade ociosa de mão de obra. Estamos desonerando um fator escasso na economia, o trabalho. Isso não deve ser favorável em nenhum caso para a inflação, a não ser que o mercado de trabalho possa ser "flexível". A desoneração da folha é uma desoneração extremamente importante para ganharmos competitividade, mas não deveria ser feita com o objetivo de manter o emprego intacto.