Título: Papa será cobrado por transparência
Autor: Meichtry, Stacy; Luhnow, David; Parks, Ken
Fonte: Valor Econômico, 14/03/2013, Internacional, p. A15

O novo Papa Francisco vai liderar uma das maiores religiões do mundo, com 1,2 bilhão de fiéis, assim como um império financeiro, de proporções misteriosas, que é alvo de cobranças por maior transparência.

Os holofotes têm se focado nos escândalos do Banco do Vaticano, com seu mundo paralelo de contas e ativos escondidos, comparado a um sistema quase mafioso de lavagem de dinheiro por analistas como o ex-padre Christian Terras, editor da revista religiosa Golias Hebdo, na França.

Persistem também as especulações sobre enorme riqueza, real ou suposta, da Igreja Católica Apostólica Romana, acumulada durante séculos e que estaria hoje escondida em empresas com passagem por paraísos fiscais, com nomes que não têm nada a ver com o Vaticano. Essa questão se torna mais sensível numa economia global em crise, e também quando o mercado da fé, e as doações de fiéis, fica mais competitivo.

"O tamanho da fortuna da Igreja Católica Romana é um mistério profundo", diz um ex-embaixador no Vaticano. O professor John Pollard, professor da Universidade de Cambridge, chegou à mesma constatação nas pesquisas para seu livro "Money and the Rise of the Modern Papacy" ("Dinheiro e a Ascensão do Papado Moderno").

"A Igreja Católica é rica, mas gosta de aparecer como pobre e recebe bilhões de dólares de subsídios estatais de países em crise", afirma o cientista político alemão Carsten Frerk, autor de "The Violet Book of Church Finances".

Segundo alguns historiadores, entre os anos de 756 e 1870 a Santa Sé obteve a maior parte de sua receita graças às terras ou Estados Pontifícios, no centro da Itália, que controlou tendo Roma como capital. Em setembro de 1870, soldados do recém-constituído Reino da Itália invadiram o Vaticano, roubaram até o tesouro pontifical e ocuparam os Estados Pontificais. Até 1929, a sede da Igreja Católica viveu de doações de fiéis.

Em 1929, o Papa Pio XI assinou com o líder fascista Benito Mussolini o Tratado de Latrão: a Santa Sé renunciou aos territórios que continuava a reivindicar em troca de uma compensação equivalente a US$ 91 milhões na época. Foi a origem da fortuna moderna da Santa Sé, que garantia que o papa não seria pobre nunca mais.

Parte importante do dinheiro teria sido investida em ouro comprado nos anos de 1930 pelo preço médio de US$ 30 a onça - hoje está acima de US$ 1.500. O Vaticano nunca vendeu seu ouro, guardado nos cofres do Federal Reserve Bank of New York.

Oficialmente, a divisão de investimentos financeiros do Vaticano, conhecida como Administrazione del Patrimonio della Sede Apostolica (APSA), gere ativos de € 680 milhões - cifra vista com forte reticência nos meios financeiros e mesmo religiosos. Além disso, o Vaticano tem enormes tesouros, como coleções de obras de arte, de Michelangelo a Rafael, guardados num bunker subterrâneo de dois andares em 24 quilômetros de labirinto. Mas nada disso pode ser vendido, no máximo serve para alavancar crédito.

Os casos de dois países, porém, dão uma ideia da força financeira da Igreja Católica. Na Alemanha, após anos de pesquisa, o cientista político Carsten Frerk estimou que os ativos de entidades legais da Igreja no país, controlados por bispos, alcançavam € 50 bilhões. Fora das estruturas legais, negócios de agências de viagem, imobiliárias e outros movimentariam € 125 bilhões por ano, segundo ele.

Segundo seus cálculos, a Igreja Católica obtém € 14 bilhões em subsídios estatais por ano para suas escolas e outras atividades na Alemanha, Áustria, Itália e Espanha. Organizações católicas rejeitam todas as cifras, insistindo que o ator é um ateu crítico da igreja.

Na Itália, o anúncio do primeiro-ministro Mário Monti de que o governo voltará a cobrar imposto sobre bens da Igreja chamou a atenção para as 110 mil propriedades do Vaticano, que vão de shopping center a residências, que estão isentas da taxa. O valor total das propriedades é estimado em US$ 12 bilhões.

"A Igreja Católica é um poder financeiro, mas não tem poder econômico porque é tudo descentralizado com as dioceses e paróquias", diz o historiador de religião francês Odon Vallet.

De acordo com um antigo embaixador no Vaticano, quem certamente conhece o estado real das finanças da Santa Sé é o cardeal brasileiro Odilo Scherer, membro do conselho que assessorou o Papa Bento XVI na parte financeira, inclusive o orçamento.

Alem do APSA, a Santa Sé tem apenas outra entidade financeira oficial: o Banco do Vaticano, como é conhecido o Instituto per la Opere di Religione (IOR), criado em 1942 para administrar a fortuna de todas as comunidades católicas do mundo. Em 2011, o banco tinha € 6,3 bilhões sob gestão e 20.772 clientes, segundo relatório do Moneyval, órgão do Conselho da Europa.

Certo mesmo é que o banco tem passado por sucessivos escândalos. A maior crise ocorreu em 1982, quando Roberto Calvi, conhecido como o "banqueiro de Deus", foi encontrado morto, enforcado na Blackfriars Bridge em Londres.

Ele era presidente da filial do Vaticano do Banco Ambrosiano, que quebrou depois do sumiço de US$ 1,3 bilhão em empréstimos feitos para supostas companhias controladas pelo Banco do Vaticano na América Latina.

O Banco do Vaticano pagou depois a soma de US$ 250 milhões aos acionistas do Ambrosiano. Em seguida, o então Papa João Paulo II lançou uma primeira reforma para melhor controlar a instituição. Ele criou um conselho de vigilância e decidiu que a contabilidade do Vaticano passaria a ser publicada. Mas transparência na Santa Sé tem limite.

Em 2010, ocorreu uma nova crise no banco, quando as autoridades italianas questionaram a origem de um volume pouco habitual de fundos do Banco do Vaticano, próximo de US$ 30 milhões, em bancos italianos. O dinheiro foi apreendido como parte de uma investigação na qual o banco teria desrespeitado regras contra lavagem de dinheiro.

O Papa Bento XVI reagiu criando o "Motu Proprio", a lei anti-lavagem no Vaticano. Mas o Moneyval, grupo anti-lavagem de dinheiro do Conselho da Europa, continua a apontar altos volumes de transações em dinheiro, atividades globais e informações muito limitadas sobre várias organizações que operam com o Banco do Vaticano. O banco demitiu seu presidente, Ettore Gotti Tedeschi, um banqueiro italiano, acusado de incompetência. Seus partidários, porém, dizem que ele foi demitido porque queria dar um mínimo de transparência ao banco. O presidente será um industrial e nobre da Baviera, Ernst von Freyberg, diretor da Ordem de Malta.

O Vaticano gasta muito, e os chamados Óbolos de São Pedro, as doações enviadas de todo o mundo diretamente ao papa, vêm principalmente de Itália, Alemanha e Estados Unidos, sem cobrir o déficit nas contas. Os últimos dados em 2012, sem detalhes, apontavam déficit de € 15 milhões, num balanço de € 300 milhões, por causa de "tendências negativas dos mercados financeiros".

O novo papa escolheu o nome de Francisco, em referência ao santo italiano identificado com pobreza e estilo de vida simples. A questão é se Francisco conseguirá modernizar as finanças da Igreja Católica ou se o Vaticano continuará ameaçado de ter seu sistema bancário bloqueado, minando sua autoridade moral.