Título: Cristina agora busca paz com a Igreja
Autor: Felício, César
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2013, Internacional, p. A13

Temas como o casamento entre homossexuais, a "morte digna" e a flexibilização sobre a "barriga de aluguel" tendem a sair da agenda da presidente argentina, Cristina Kirchner, ao menos neste ano. Diante da eleição do cardeal de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, como o novo papa Francisco, Cristina já ensaia uma reaproximação com a cúpula da Igreja Católica.

A presidente estará na cerimônia de assunção do papa Francisco na terça-feira e convidou para sua comitiva dirigentes da oposição, como o deputado Ricardo Alfonsín, da União Cívica Radical (UCR), e o presidente da Suprema Corte, Ricardo Lorenzetti, com quem está em confronto. Em entrevista à agência oficial de notícias Télam, o embaixador da Argentina na Santa Sé, Juan Pablo Cafiero, afirmou que a "eleição de Bergoglio é positiva para a Argentina".

"Despolitizar a comitiva que vai à cerimônia é um gesto forte de moderação", avaliou o cientista político Marcos Novaro, vinculado à oposição. Em outubro, haverá eleições parlamentares na Argentina, que poderão dar a Cristina a maioria necessária no Congresso para alterar a Constituição e garantir o direito a uma nova reeleição em 2015. Antes disso, o papa Francisco deve visitar o país. Ontem, o porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardo, afirmou que é "natural" que a Argentina seja um dos primeiros países a ser visitado pelo novo pontífice.

Apesar de 90% da população do país ser nominalmente católica, o governo argentino buscou nos últimos anos capitalizar a secularização crescente da sociedade, com uma agenda de ampliação de direitos de minorias. "Esse avanço sempre foi contestado pelos setores tradicionais do peronismo, que bloqueou a implementação das mudanças nas Províncias. Com um papa argentino no Vaticano, o governo deve ceder mais espaço ao catolicismo convencional", disse Novaro.

Em 2011, a base governista no Congresso aprovou um projeto flexibilizando à proibição do aborto, permitindo a prática na hipótese de estupro. A lei dependia de regulamentações regionais e poucos governadores o fizeram. No ano anterior, o Congresso aprovou a legalização do matrimônio homossexual. Em 2012, permitiu a mudança de sexo no registro civil.

Bergoglio se opôs às mudanças, mas a oposição teria dificuldades de capitalizar uma reação conservadora às vésperas da eleição. Setores como o Partido Socialista e o prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, apoiaram as propostas. "Ele encarna um sentimento antikirchnerista, mas como a oposição não tem viés clericalista, dificilmente pode se beneficiar em um confronto da Igreja com o governo", afirmou o cientista político Diego Raus, da Universidade de Lanús.

Um confronto entre Igreja e peronismo foi um dos detonadores da queda de Juan Domingo Perón da Presidência em 1955. O então presidente legalizou o divórcio e a prostituição e foi excomungado pelo papa Pio XII. Em reação, peronistas incendiaram igrejas no feriado de "Corpus Christi".

O quadro atual na Argentina é outro. "Da mesma forma que os sinais iniciais do governo são de moderação, a Igreja não parece disposta a uma guerra contra o governo", disse Novaro. Também fará parte da comitiva o presidente da Conferência Episcopal Argentina, dom José Maria Arancedo, arcebispo de Santa Fé. O vice-governador da Província de Buenos Aires, Gabriel Mariotto, chegou a chamar Francisco de " papa peronista".

A expressão não é incorreta: Jorge Bergoglio integrou nos anos 70 a "Guarda de Ferro", grupo de militantes peronistas que combatia a ascensão da esquerda dentro do movimento. A "Guarda de Ferro" foi estimulada por Perón, já perdoado pelo Vaticano.

Mesmo em um ambiente secular, Cristina preservou espaços privilegiados para a Igreja. A Constituição do país ainda considera a Igreja Católica a "religião oficial do Estado" em seu segundo artigo. E na recente lei de meios que Cristina impulsionou, as emissoras de rádio e de televisão católicas estão excluídas dos limites impostos aos demais meios de comunicação.