Título: A África no fundo do buraco
Autor: Martin Wolf
Fonte: Valor Econômico, 12/01/2005, Opinião, p. A9

O abalo sísmico e os tsunamis que atingiram a Ásia em 26 de dezembro relembraram nossa humanidade compartilhada. A catástrofe também estimulou uma rivalidade entre doadores oficiais, cujas promessas de ajuda agora ultrapassam US$ 3 bilhões. No entanto, esse desastre não deveria desviar a atenção de calamidades habituais - o desastre na Ásia deixou milhares de órfãos, mas na África vivem cerca de 12 milhões de crianças que a Aids transformou em órfãs. Uma geração atrás, qualquer pessoa preocupada com os desafios da pobreza e de doenças teria os olhos voltados para a Ásia. Muitos analistas não-asiáticos acreditavam que os obstáculos ao progresso eram insuperáveis. Eles estavam errados. A Ásia, onde vive mais de metade da população mundial, tem revelado um sucesso notável. O continente que fracassou é a África Subsaariana. Nenhuma região do mundo compara-se com a África em termos de queda na renda média per capita, declínio na expectativa de vida e explosão de pobreza. As conseqüências para o restante do mundo são repugnantes, tanto do ponto vista moral como prático. É moralmente repugnante permitir que numa região onde vivem 700 milhões de nossos semelhantes, o atraso em relação ao resto do mundo cresça ainda mais. É repugnante do ponto de vista prático, porque as conseqüências serão sentidas em outros países na disseminação de doenças e emigração em massa. O restante do mundo não terá condições de proteger-se indefinidamente do sofrimento de um continente inteiro em crise. Assim, o que deve ser feito? Responder essa pergunta é a tarefa definida para a Comissão para a África, constituída pelo governo britânico. Os 17 comissários, nove dos quais africanos, estão preparando um relatório para ser apresentado por ocasião da conferência de cúpula do grupo de oito países de mais alta renda, na Escócia em junho. O encontro deverá ser encerrado exortando uma duplicação da ajuda ao continente em graves dificuldades, o que significaria pelo menos outros US$ 20 bilhões por ano. Esse relatório ainda não é de domínio público. Mas outra análise detalhada, que também defende a concessão de uma ajuda muitíssimo maior, está disponível. Trata-se de estudo realizado por Jeffrey Sachs, da Universidade Colúmbia, e por diversos co-autores. O cerne da argumentação desse documento é triplo: primeiro, o mundo chegou a um consenso sobre os "objetivos de desenvolvimento do milênio", um conjunto de metas que deverão ser alcançadas em 2015; segundo, a África não tem possibilidades de atingir tais objetivos, porque está aprisionada numa "armadilha de pobreza"; terceiro, um grande aumento em recursos do exterior, aliado a um abrangente programa de desenvolvimento, permitiria à África escapar da armadilha. O argumento referente à "armadilha de pobreza" é que a atual pobreza africana resulta em poupança interna muito baixa, que em vista do crescimento populacional gera crescimento baixo, ou mesmo negativo, nas rendas reais per capita. Nessa situação, argumentam os autores, nenhuma ação plausível empreendida pelos países africanos poderá, sozinha, iniciar o rápido crescimento sustentado sobre o qual foi construído o sucesso da Ásia. A criação da armadilha africana, argumenta o professor Sachs e seus colegas, decorre de cinco deficiências estruturais: custos de transporte muito altos e pequeno tamanho de mercado; baixa produtividade da agricultura; ônus excepcionalmente elevado na área de saúde; longa história de intervenções externas malignas; e lentidão na difusão de tecnologia proveniente do exterior. Tendo em vista essas limitações, sem mencionar o mais rápido crescimento populacional em todo o mundo, uma poupança interna bruta em torno de 11% revela-se muito aquém do necessário. O rápido esgotamento de recursos talvez até quase anule o investimento líquido. A África, em suma, está encalacrada.

Maior ajuda implica riscos, mas sua ausência produzirá certezas abomináveis; gerenciemos os riscos, não vivamos com tais certezas

O que é necessário para escapar da armadilha, argumenta-se, é um "grande empurrão" sustentado por cerca de duas décadas. O empurrão visaria sete áreas: elevar a produtividade rural; enfrentar doenças; universalizar o ensino primário e expandir a educação secundária; financiar o desenvolvimento urbano; mobilizar ciência e tecnologia; promover igualdade de direitos de homens e mulheres e a integração regional. Quanto custaria isso tudo? Em muitos países, argumentam os autores do estudo, a ajuda precisará ser de 20% a 30% do PIB. Para toda a África Subsaariana, os autores falam em mais US$ 25 bilhões por ano, além dos US$ 19 bilhões alocados em 2002. Se a África Subsaariana inteira viesse a receber 25% do PIB, o total seria de US$ 90 bilhões - resultando, portanto, na quadruplicação dos atuais fluxos líquidos. Até que ponto deveríamos aceitar esse argumento? Críticos questionariam a existência da armadilha de pobreza. É verdade que cerca de um terço da população vive em países sem de acesso ao mar e destituídos de recursos naturais. Suas populações têm, hoje, escassa esperança de vida melhor. Em um mundo razoável, esses contingentes populacionais migrariam. Entretanto, cerca de um terço da população vive em países que dispõem de substanciais recursos naturais, e outro terço em países litorâneos. Não são evidentes as razões pelas quais essas duas últimas categorias deveriam ser incapazes de crescer. Na realidade, as evidências são contra esse pessimismo: diversos países cresceram com razoável vigor no decorrer da década passada, entre eles Moçambique e Uganda. Novamente, nesse ponto, os críticos argumentariam que os responsáveis pelo sofrimento do continente são os cleptocratas, tiranos e bandidos africanos. Além disso, esse mesmo desgoverno seria responsável pelo roubo, desperdício, ou ambos, da ajuda adicional. Contra isso, os autores argumentam que os governos africanos não são piores do que seria de esperar em países tão pobres. Entretanto, a qualidade da governança determina os níveis de renda citados pelos autores para justificar a qualidade da governança. E o que é ainda mais importante: mesmo que a governança africana não seja pior do que se poderia esperar, ela pode ser demasiado ruim para utilizar ajuda substancialmente maior. Entretanto, mesmo que a armadilha de pobreza não seja inescapável, o buraco em que grande parte da África se encontra é fundo. Além disso, mesmo que a governança africana tenha, com muita freqüência, sido criminosa, podemos ver cada vez mais exceções. Acima de tudo, o sofrimento dos próprios africanos não pode ser negado. Se a concessão de mais 0,1% do PIB dos países ricos pudesse fazer alguma diferença, seria errado negá-la. A grande questão, para os defensores de ajuda adicional, não é se os ricos têm condições de arcar com esses custos, mas se os pobres serão capazes de usá-los. Existem pelo menos dois grandes riscos: o primeiro é que a ajuda desestimularia as exportações, das quais depende o crescimento de mais longo prazo; o segundo é que elevados níveis de ajuda estimularão corrupção, políticas inadequadas e desperdício. Entretanto, a opção por nada fazer é pior. Maior ajuda implica riscos. Mas sua ausência produzirá certezas abomináveis. Gerenciemos os riscos, não vivamos com tais certezas.