Título: Mais um erro crasso de Bush
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Fonte: Valor Econômico, 19/03/2007, Opinião, p. A15

A administração Bush mais uma vez comete um erro crasso político de grandes proporções no Oriente Médio, ao apoiar ativamente o governo israelense na sua recusa de reconhecer um governo de unidade palestina que inclui o Hamas. Isso impede qualquer progresso rumo a um acordo de paz, num momento em que o progresso na questão do problema palestino poderia ajudar a evitar uma conflagração no Oriente Médio mais amplo.

Os EUA e Israel tentam negociar apenas com o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. Eles esperam que novas eleições negarão ao Hamas a maioria que detém atualmente no Conselho Legislativo palestino. Esta é uma estratégia irrealizável, pois o Hamas boicotaria as eleições antecipadas e, mesmo se o seu resultado acarretasse a exclusão do Hamas do governo, nenhum acordo de paz se manteria sem o apoio do Hamas.

Enquanto isso, a Arábia Saudita persegue um caminho diferente. Num acordo de cúpula ocorrido em Meca entre Abbas e o líder do Hamas, Khaled Mashaal, o governo saudita elaborou um acordo entre Hamas e Fatah, que têm se confrontado violentamente, para formar um governo de união nacional. Segundo o acordo de Meca, o Hamas concordou em "respeitar resoluções internacionais e acordos [com Israel] assinados pela Organização para a Libertação da Palestina", incluindo os acordos de Oslo. Os sauditas consideram esse acordo um prelúdio para a proposta de um acordo de paz com Israel, a ser garantido pela Arábia Saudita e outros países árabes. Nenhum progresso será possível, no entanto, enquanto a administração Bush e o governo israelense de Ehud Olmert persistirem em se recusar a reconhecer um governo de unidade que inclua o Hamas.

Grande parte das causas do impasse atual remonta à decisão do primeiro-ministro israelense Ariel Sharon de se retirar da Faixa de Gaza unilateralmente, sem negociar com a Autoridade Palestina então controlada pelo Fatah. Esta postura fortaleceu o Hamas, contribuindo para a sua vitória eleitoral. Então Israel, com forte apoio dos EUA, se recusou a reconhecer o governo democraticamente eleito do Hamas e reteve o pagamento dos milhões em impostos arrecadados pelos israelenses em seu nome. Isso causou provações econômicas e minou a capacidade de funcionamento do governo. Não reduziu, contudo, o apoio conferido pelos palestinos ao Hamas e reforçou a posição dos islâmicos e demais extremistas que se opõem a negociações com Israel. A situação se deteriorou ao ponto em que os palestinos já não tinham uma autoridade com a qual Israel pudesse negociar.

-------------------------------------------------------------------------------- A ascensão do Irã como provável potência nuclear e a resistência do Hezbollah à investida israelense ameaçam a existência de Israel como nunca --------------------------------------------------------------------------------

Trata-se de um erro crasso, pois o Hamas não é monolítico. Sua estrutura interna é pouco conhecida a pessoas de fora, mas, de acordo com alguns relatos, a organização possui uma ala militar, dirigida em grande parte a partir de Damasco e que deve gratidão aos seus patrocinadores sírios e iranianos, e uma ala política, que é mais sensível às necessidades da população palestina que o elegeu. Se Israel tivesse aceitado os resultados da eleição, o fato teria fortalecido a mais moderada ala política. Lamentavelmente, a ideologia da "guerra ao terror" não permite este tipo de distinções sutis. Não obstante, eventos subseqüentes ofereceram algum motivo para acreditar que o Hamas esteja dividido entre suas distintas tendências.

Assim que o Hamas concordou em compor um governo de unidade nacional, a ala militar arquitetou o seqüestro de um soldado israelense, o que impediu a formação deste governo, por provocar uma brutal reação militar israelense. O Hezbollah então usou a oportunidade para promover uma incursão a partir do Líbano, seqüestrando vários soldados israelenses adicionais. Apesar de uma reação desproporcional por parte de Israel, o Hezbollah conseguiu se ater às suas posições, conquistando a admiração das massas árabes, tanto sunitas como xiitas. Foi esta perigosa situação - incluindo o colapso do governo na Palestina e os combates travados entre Fatah e Hamas - que levou à iniciativa saudita.

Defensores da política atual argumentam que Israel não pode se permitir negociar a partir de uma posição de fraqueza. É improvável que a posição de Israel melhore, porém, enquanto o país mantiver a sua rota atual. A escalada militar - não só do "olho por olho", mas de praticamente 10 vidas palestinas para cada vida israelense - atingiu o seu limite. Depois da retaliação das Forças de Defesa de Israel contra o sistema rodoviário, de aeroportos e demais tipos de infra-estrutura, só resta conjeturar qual será a próxima iniciativa das forças israelenses. O Irã representa um perigo potencial maior para Israel que o Hamas ou o Hezbollah, que são clientes do Irã. Há um risco crescente de uma conflagração na qual Israel e EUA poderiam muito bem estar do lado perdedor. Com a capacidade do Hezbollah de resistir à violenta investida israelense e com a ascensão do Irã como uma provável potência nuclear, a existência de Israel está mais ameaçada do que em qualquer momento desde a sua criação.

Israel e EUA parecem estar congelados na sua indisposição de negociar com uma Autoridade Palestina que inclui o Hamas. O pomo de discórdia é a indisposição do Hamas de reconhecer a existência de Israel; mas isto poderia ser transformado numa condição para um acordo eventual, em vez de uma precondição para as negociações. Meramente demonstrar superioridade militar não basta como uma política para lidar com o problema palestino. Existe agora uma oportunidade para uma solução política com o Hamas, trazida pela Arábia Saudita. Seria trágico desperdiçar essa possibilidade porque a administração Bush está atolada na ideologia da Guerra ao Terror.

George Soros é financista e filantropo. É presidente do conselho de administração do Soros Fund Management e presidente do conselho de administração da "Open Society Institute". Uma versão mais extensa deste artigo aparece no "New York Review of Books". © Project Syndicate/Europe´s World, 2007. www.project-syndicate.org