Título: Brasil ignora condenações do tribunal internacional
Autor: Prestes, Cristine
Fonte: Valor Econômico, 19/03/2013, Especial, p. A16

Mesmo que os condenados na Ação Penal nº 470 recorram à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a eficácia de uma possível decisão favorável a eles no Brasil é vista como bastante duvidosa. Em dois episódios recentes, decisões da instância internacional foram simplesmente ignoradas internamente. O mais notável deles é o que envolve a repressão à Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974.

Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou um pedido de revisão da Lei da Anistia, feito pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para permitir a punição de funcionários públicos envolvidos na tortura e desaparecimento dos opositores ao regime militar. Pela lei mantida pelo Supremo, o país não pode investigar agentes do Estado envolvidos no caso. Meses depois, a Corte Interamericana condenou o Brasil pelo desaparecimento de 62 militantes do PCdoB durante a repressão à Guerrilha do Araguaia. Para os juízes que julgaram o processo, o país está obrigado a investigar e punir os responsáveis pela tortura, morte e ocultação de cadáveres, já que é um dos signatários da Convenção Americana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Passados mais de dois anos da decisão da Corte Interamericana, nada mudou em relação ao tema - o Supremo não reviu sua decisão, levando o Brasil a descumprir a sentença internacional. Na época presidente do Supremo, o então ministro Cezar Peluso disse que a condenação do país no tribunal da OEA "não revoga, não anula, não caça a decisão do Supremo". Em outras palavras, afirmou que, em termos de legislação interna, quem manda é o Supremo. "O paradoxo é esse: a Corte Suprema entende que a Corte Interamericana não vale nada", diz o jurista Luiz Flávio Gomes. "Salvo os ministros Ricardo Lewandowski e Celso de Mello, nenhum dos outros dá nenhuma bola para a Corte."

Mas foi um caso recente envolvendo o Brasil que levou os países sul-americanos a questionar as decisões da instância internacional, resultando em um processo de revisão de seu regimento interno que ainda está em curso. "As decisões começaram a desagradar os países, criando dois blocos distintos", afirma o advogado Martim de Almeida Sampaio, especialista em direito internacional e coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB de São Paulo. Segundo ele, em um bloco se reuniram países dispostos a simplesmente descumprir as decisões da Corte, como a Venezuela; em outro, nações que aceitam as decisões, mas nem todas - é deste grupo que o Brasil faz parte.

A divisão ficou exposta a partir do caso da Usina de Belo Monte. Em abril de 2011, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos determinou a interrupção imediata da construção do empreendimento diante de uma denúncia encaminhada no fim de 2010 por entidades que representam as comunidades indígenas da região, que alegam que não foram consultadas. Não só a construção de Belo Monte não foi suspensa como a decisão da Corte recebeu do governo brasileiros as mais variadas críticas. Em nota, o Itamaraty afirmou que "o governo brasileiro considera as solicitações da CIDH precipitadas e injustificáveis" e que, "sem minimizar a relevância do papel que desempenham os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, recorda que o caráter de tais sistemas é subsidiário ou complementar, razão pela qual sua atuação somente se legitima na hipótese de falha dos recursos de jurisdição interna". Já o diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Nelson Hubner, afirmou que a OEA "conhece muito pouco para dar um parecer deste". Mais direto, o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, apelou para que a OEA "vá cuidar de outro assunto".

De acordo com Martim de Almeida Sampaio, o Brasil "tem cumprido parcialmente" as decisões da Corte Interamericana. Mas nem sempre foi assim. Signatário do Pacto de São José da Costa Rica desde 1992, o Brasil foi condenado em 2001 por negligência e omissão em relação à violência doméstica na Corte internacional durante o julgamento do caso da farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes. Espancada durante seis anos, Maria da Penha chegou a levar um tiro do marido, que também tentou eletrocutá-la em 1983, deixando-a definitivamente paraplégica. O agressor foi condenado pela Justiça brasileira em um processo que durou 19 anos sem que tenha sido preso. O caso, então, foi levado ao tribunal internacional em 1998. Em 2006, cinco anos após a decisão da CIDH, o Congresso aprovou a Lei Maria da Penha, que aumentou o rigor das punições às agressões contra a mulher quando ocorrem em ambiente familiar. "Neste caso o Brasil cumpriu integralmente a decisão da Corte", diz Sampaio.