Título: Defesa vê precedente para o mensalão na OEA
Autor: Prestes, Cristine
Fonte: Valor Econômico, 19/03/2013, Especial, p. A16

Uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) envolvendo um ex-funcionário do governo da Venezuela será usada como precedente pela defesa de réus da Ação Penal nº 470 para tentar reverter as condenações impostas a eles pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Advogados que atuam no caso afirmam que o episódio venezuelano serve "como uma luva" para o caso brasileiro e que é possível não só levar o mensalão a uma jurisdição internacional como até mesmo pleitear uma medida cautelar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos que impeça a prisão dos condenados logo após o julgamento dos recursos e o trânsito em julgado do processo na Suprema Corte brasileira.

O caso "Barreto Leiva versus Venezuela" teve início em 1996, quando o ex-diretor geral setorial de Administração e Serviços do Ministério da Secretaria da Presidência da Venezuela, Oscar Enrique Barreto Leiva, recorreu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos com o argumento de que seu país desrespeitou a Convenção Americana de Direitos Humanos - também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica - do qual é signatário.

A alegação de Leiva foi a de que ele, mesmo não tendo prerrogativa de foro, foi julgado pela Suprema Corte venezuelana por conexão, já que também eram réus no processo o ex-presidente Carlos Andrés Pérez e outras autoridades com foro privilegiado. Com isso, a Venezuela teria desrespeitado uma das garantias judiciais previstas no artigo 8º da Convenção, segundo a qual durante o processo toda pessoa tem direito, em plena igualdade, à garantia mínima de "recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior".

Com a remessa e julgamento das acusações contra si pela Corte Suprema de Justiça, a última instância judiciária da Venezuela, Leiva não pode recorrer contra sua condenação, cuja pena imposta foi de um ano e dois meses de prisão por crimes contra o patrimônio público praticados durante sua gestão, em 1989. Em 2008 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos - instância da Organização dos Estados Americanos (OEA) responsável por receber as reclamações por violações à convenção e aceitá-las ou não - admitiu o caso e fez recomendações à Venezuela. Diante da ausência de respostas, remeteu o processo à Corte Interamericana de Direitos Humanos para que fosse julgado. O tribunal da OEA decidiu que não apenas Leiva como também os réus com foro privilegiado tinham o direito a recorrer, condenando o país a realizar um novo julgamento para garantir a eles o direito ao chamado "duplo grau de jurisdição".

A possibilidade de um recurso desse tipo foi aventada por alguns dos réus do mensalão ainda durante o julgamento no Supremo, mas foi motivo de desdém por parte de alguns ministros e do procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Em outubro do ano passado, o presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, relator do processo do mensalão, disse que a afirmação dos advogados tentava "enganar o público leigo e ganhar dinheiro às custas de quem não tem informação". "Que leiam a Constituição brasileira, que leiam as leis que regem os tribunais", afirmou. Uma semana antes, o ministro Marco Aurélio Mello já havia dito que a defesa estava praticando o que se chama de "jus sperniandi" - o direito de espernear. "O que se pode alegar, transgressão ao devido processo legal? Eu penso que aí não há campo para isso. É o direito de espernear ou de se fazer um discurso político para preparar outro campo", afirmou. Já para Gurgel, o recurso à Corte da OEA "é algo que não tem a mínima viabilidade".

Não é, no entanto, o que pensam os advogados que atuaram no processo do mensalão junto ao Supremo. Vários deles já estudam o precedente da Venezuela na Corte Interamericana, embora ainda acreditem que há possibilidade de alterações nas sentenças dadas pelo STF durante a fase de recursos, que será iniciada logo após a publicação do acórdão da Ação Penal nº 470, previsto para o dia 1º de abril.

José Luis de Oliveira Lima, que defende o principal réu do mensalão - o ex-ministro-chefe da Casa Civil do governo Lula, José Dirceu, condenado a 10 anos e 10 meses de prisão por crime de formação de quadrilha e corrupção ativa -, já contactou o jurista Dalmo de Abreu Dallari para fazer um parecer a ser apresentado à instância internacional e um outro advogado especialista no tema já estuda o assunto. "O que a Corte pode fazer é solicitar que se faça um outro julgamento", acredita.

O advogado Martim de Almeida Sampaio: uso do precedente venezuelano na Corte internacional "não vai funcionar"

Advogado do deputado federal João Paulo Cunha (PT-SP), condenado a 9 anos e 4 meses de prisão pelos crimes de peculato, corrupção ativa e lavagem de dinheiro, também já pensa em uma possível defesa de seu cliente no tribunal da OEA e já conversou com os juristas Luiz Flávio Gomes e Ada Pellegrini Grinover a respeito. Segundo ele, o caso da Venezuela é um grande precedente, que "cabe com exatidão" no caso do mensalão. "Existe um precedente e, portanto, a chance [de recorrer à Corte Interamericana] é grande", diz. "Tendo ou não foro privilegiado, todo mundo tem direito ao duplo grau de jurisdição."

"Não excluo essa hipótese [de um recurso à CIDH]", diz o advogado Marcelo Leonardo, que defende o publicitário Marcos Valério, considerado pelo Supremo como o operador do mensalão e cuja pena imposta foi de 40 anos, 1 mês e 6 dias de prisão por crime de formação de quadrilha, corrupção ativa, peculato, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. "Em princípio é possível [recorrer à Corte Interamericana], porque o Brasil é signatário da Convenção de Direitos Humanos, que prevê entre as garantias o duplo grau de jurisdição para quem não tem foro privilegiado", afirma.

No escritório do advogado Márcio Thomaz Bastos, também já se estuda o precedente venezuelano da Corte Interamericana. O ex-ministro da Justiça - que atua na defesa do ex-diretor do Banco Rural José Roberto Salgado, condenado a 16 anos e 8 meses de prisão por crime de formação de quadrilha, gestão fraudulenta, evasão de divisas e lavagem de dinheiro -, no entanto, prefere aguardar a publicação da decisão do STF. Isso porque o acórdão trará o entendimento da Suprema Corte sobre a questão de ordem levantada por Thomaz Bastos, que inaugurou o julgamento do mensalão em 2 de agosto do ano passado. O ex-ministro recorreu à Convenção de Direitos Humanos para pedir o desembramento do processo e a remessa dos réus sem foro privilegiado à primeira instância da Justiça, com o argumento de que a decisão do Supremo de julgar, por conexão, os 35 acusados sem prerrogativa de função junto com os outros 3 que a detêm fere o direito ao duplo grau de jurisdição. Saiu derrotado por 9 votos a 2 - dos ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello.

Os advogados encontram em alguns juristas o respaldo que precisam para tentar fazer valer seus argumentos. Para o criminalista Luiz Flávio Gomes, advogado, ex-promotor de Justiça e ex-juiz, "há uma enorme chance de a Comissão Interamericana de Direitos Humanos remeter o caso à Corte internacional" - de 99,9%, avalia. "Na minha opinião vão admitir isso facilmente", diz. Ele ainda levanta a hipótese - considerada pelos próprios advogados do caso como de chance remota - de a Comissão emitir uma medida cautelar para evitar a prisão imediata dos condenados após o trânsito em julgado da ação penal no Supremo enquanto o tribunal da OEA não julga se a decisão do Supremo violou ou não os direitos humanos. "Mas nesse caso não há precedentes", diz.

No caso Barreto Leiva versus Venezuela, Luiz Flávio Gomes afirma que o precedente é relevante porque "extremamente semelhante ao caso brasileiro". Segundo ele, a Corte segue fielmente sua jurisprudência e é raríssimo que modifique um precedente. O jurista diz ainda que, nos casos dos réus que obtiveram 4 votos por sua absolvição, se o Supremo admitir a interposição de embargos infringentes contra a decisão do plenário, o julgamento desses recursos pode cumprir a função do duplo grau de jurisdição. Dos 25 condenados, 14 deles contaram com os 4 votos absolutórios necessários para que se admitam os embargos infringentes para recorrer contra as condenações em alguns crimes. No entanto a admissão desse tipo de recurso ainda é uma incógnita, uma vez que o ministro Luiz Fux declarou, em outubro, que essa possibilidade já havia sido derrubada por lei.

O professor titular do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Renato de Mello Jorge Silveira, compartilha da mesma opinião. "Se o Supremo aceitar julgar os embargos infringentes, acho que esvazia um pouco a alegação à Corte Interamericana, pois haverá duas repetições de julgamento", afirma. "Mas, se por outro lado, os ministros disserem que os infringentes não valem mais, aí ganha força a tese do recurso ao tribunal internacional." Já no caso dos réus que não contam com a possibilidade de usar o recurso, ele acredita que caberia recorrer à Corte Interamericana.

Nem todos os juristas pensam desta forma. Para o advogado Martim de Almeida Sampaio, especialista em direito internacional e coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB de São Paulo, o uso do precedente venezuelano para tentar levar o mensalão à Corte Interamericana "não vai funcionar". "Essencialmente não houve nenhuma violação dos direitos humanos", diz. Segundo ele, o duplo grau de jurisdição é um direito de qualquer cidadão, mas o cerceamento de defesa pela ausência dele deveria ter sido arguido desde o primeiro momento, quando a denúncia foi aceita pelo Supremo, em 2007.

O criminalista Arnaldo Malheiros Filho, que defende o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, condenado a 8 anos e 11 meses por crime de formação de quadrilha e corrupção ativa, põe em dúvida os resultados práticos de um recurso à Corte Interamericana. "É importante, mas acho que não terá muita eficácia para os acusados", diz. A afirmação faz sentido, considerando a posição do Brasil - e do próprio Supremo - em relação ao tribunal da OEA (leia matéria abaixo). No caso da Venezuela, até onde se tem notícia, o novo julgamento de Oscar Enrique Barreto Leiva nunca aconteceu.