Título: Falando em Bush e na saúde pública brasileira
Autor: Marques, Rosa e Mendes, Áquilas
Fonte: Valor Econômico, 30/03/2007, Opinião, p. A30

Alguns dias antes da chegada do presidente Bush ao Brasil, este divulgou uma série de iniciativas assistencialistas para a região da América Latina. Essas medidas, amplamente divulgadas e comentadas na mídia, compreendiam desde o envio de um navio hospital até a concessão de microcrédito e financiamento para casa própria. Na interpretação de alguns analistas, seu pronunciamento, mais do que significar o reconhecimento do "abandono" da região pelos Estados Unidos, é uma tentativa atrapalhada - para dizer o mínimo - de se contrapor à influência do presidente Hugo Chávez, exatamente em uma das áreas em que ele é mais conhecido fora da Venezuela, mediante a implantação das chamadas misiones. Os programas sociais contemplados pelas misiones atendem a educação básica e universitária, a moradia, a saúde, a distribuição de alimentos a baixo custo, entre outros. No caso particular da saúde, trata-se de garantir o acesso da assistência básica a todos venezuelanos e da criação, mais no médio prazo, das condições de acesso para outros níveis de complexidade da assistência. Como é sabido, este programa conta com a participação ativa de profissionais cubanos da área da saúde, sendo que o acordo entre as duas nações contempla o incentivo à formação de médicos e demais profissionais da área em solo cubano, o que está aberto a interessados originários de outros países da América Latina. Mesmo entre seus mais intransigentes críticos, Cuba é reconhecida por sua excelência na garantia das ações e serviços de saúde à sua população, na formação de seus profissionais de saúde e nos avanços decorrentes de seu investimento em pesquisa.

Abstraindo-se o fato dessa evidente intencionalidade do presidente Bush, seu "pacote" assistencialista é um despropósito em todos os sentidos. Na relação entre as nações, ações "humanitárias" são realizadas quando o governo do país em questão decreta e solicita ajuda internacional. Além disso, em que pese o tamanho da pobreza nos países da América Latina e o fato de as políticas públicas sociais terem sido sempre consideradas residuais e não prioritárias (em relação às demais políticas realizadas pelos diferentes governos), não houve mudanças que justificassem o anúncio unilateral pelo presidente Bush da intenção de promover tal ajuda "humanitária". Se algo mudou a partir dos anos 1980 nesses países, uns mais cedo que outros, é que governos não só acataram exemplarmente as orientações do Fundo Monetário Internacional (FMI) quando da crise da dívida externa, como entraram na aventura das políticas neoliberais, enfraquecendo o Estado e manietando sua ação soberana.

No caso do Brasil, na área da saúde pública, temos assistido constantes tentativas de redução de seu orçamento. Durante o primeiro mandato do governo Lula, em todos os anos o Executivo tentou contemplar, na proposta orçamentária para o Ministério da Saúde e enviada para o Congresso, despesas que não são consideradas ações e serviços de saúde pública, isto é, que não integram as atividades do Sistema Único de Saúde (SUS). Essas tentativas, contudo, foram barradas pela pronta mobilização das forças que lutam e apóiam o SUS. Este ano, para surpresa de muitos, a atitude do governo em relação à saúde se superou, não tendo termos de comparação com o passado. Isso porque, mediante o Decreto 6.046, de 22 de fevereiro, simplesmente contingenciou cerca de 14% das despesas autorizadas para o Ministério da Saúde. Em outras palavras, tornou essas despesas não realizáveis.

-------------------------------------------------------------------------------- Os recursos disponíveis para o Ministério da Saúde foram reduzidos a R$ 39,9 bilhões, abaixo do valor mínimo a ser aplicado --------------------------------------------------------------------------------

Do ponto de vista técnico, o Executivo dispõe do estatuto do contingenciamento quando quer garantir que rigorosamente as receitas respaldem as despesas previstas. Neste ano, contudo, o volume de recursos contingenciados na saúde, ao coincidir como o anúncio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), leva a pensar que o governo tem a intenção oculta de garantir recursos para sua efetivação, além de engrossar o resultado do superávit primário, como tem sido comum nos últimos anos. O resultado disso é o descumprimento escandaloso do preceito que estabelece que o valor mínimo a ser aplicado pelo governo federal na saúde pública corresponde ao valor empenhado no ano anterior, acrescido da variação do PIB nominal.

Segundo este preceito, a Comissão de Orçamento e Finanças (Cofin) do Conselho Nacional de Saúde calculou que o valor mínimo a ser aplicado em 2007 seria de R$ 43,5 bilhões. Quando da aprovação do orçamento da União pelo Poder Legislativo, esse mínimo foi acrescido de R$ 2,3 bilhões, de forma que o orçamento para este ano, destinado às ações e serviços de saúde, seria de R$ 45,8 bilhões. Todavia, após o contingenciamento de R$ 5,9 bilhões, os recursos disponíveis para o Ministério da Saúde foram reduzidos a R$ 39,9 bilhões, bastante abaixo do valor mínimo a ser aplicado. Esse fato não só interrompe uma trajetória de recuperação do lugar da saúde pública na agenda nacional, como compromete os programas e as atividades já desenvolvidas hoje pelo SUS. Depois, ninguém sabe explicar por que faltam medicamentos, por exemplo, que, para serem comprados e depois distribuídos, necessitam passar por um processo de licitação e esse, para ser deflagrado, necessita ter recursos garantidos.

É neste momento que o presidente Bush vem acenar com um "pacote" assistencialista, nele incluindo ações na área da saúde para a região da América Latina. Se não fosse a gravidade da situação em que se encontra o SUS com este contingenciamento, que pode comprometer a continuidade de um projeto iniciado há quase três décadas, e para o qual muito resta ainda a fazer, diríamos que, ao contrário do dito popular, não estaríamos trocando seis por meia dúzia, caso fosse aceita a "generosa" oferta de Bush.

Rosa Marques é professora titular da PUC-SP, especialista em políticas sociais e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (1998 e 2002).

Áquilas Mendes é professor de Economia da PUC-SP e da FAAP/SP, vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e coordenador de Gestão de Políticas Públicas do Centro de Estudos de Pesquisa de Administração Municipal.