Título: Reforma política é incapaz de mobilizar a sociedade, diz cientista política
Autor: Junqueira, Caio
Fonte: Valor Econômico, 02/04/2007, Política, p. A13

A interpretação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a fidelidade partidária não é início da reforma política porque o tema não tem consenso no Congresso nem na socidade. A opinião é da professora do Iuperj e pesquisadora do Cebrap, Argelina Figueiredo.

Para a cientista política, a elite política do país tem uma visão excessivamente idealizada sobre sistemas políticos estrangeiros. "Não existe a idéia de democracia consolidada. Achar que os EUA e a Inglaterra têm democracias consolidadas é errado. O ideal de democracia nunca foi atingido. Nosso sistema é muito mais representativo, muito mais aberto, permite uma entrada muito maior da população no sistema político", diz.

Em entrevista concedida, por telefone, do Rio de Janeiro, ao Valor, a cientista política diz que o sistema político brasileiro precisa antes de ajustes pontuais no reforço à fiscalização e à prestação de contas que de grandes reformas. A seguir, os principais pontos da entrevista:

Valor: A decisão do TSE de reforçar a fidelidade partidária é o início da reforma política?

Argelina: Acho que não. Podem até vir a colocar em pauta algum assunto, mas não creio em reformas profundas. O Congresso age muito em função de movimentos que são mais amplos e da opinião da população também. A incerteza pode ficar muito grande para eles em relação a questões mais radicais. A população é muito ambígua sobre os principais pontos da reforma que se discute. Não aceita a lista partidária, por exemplo, por crer que colocar uma lista de prováveis eleitos na mão da cúpula partidária não irá melhorar o sistema. Além disso, há um movimento forte de deputados influentes contrários ao voto em lista. O financiamento público também tem problemas de aceitação. Então, em relação à reforma, podem continuar falando, pode continuar na agenda, mas não acredito que haverá uma mudança radical.

Valor: Isso é ruim?

Argelina: Para mim, não. Existe uma visão idealizada de como funcionam as instituições em outros países. Fala-se que é importante para a democracia a proximidade do eleitor com o eleito, que seria trazido pelo voto distrital, mas por outro lado tem que ter representatividade. É uma questão de justiça política. O voto proporcional é mais justo, deixa menos eleitores de fora em termos de sua representação. Portanto, há muitos valores em questão que não são analisados a fundo.

Valor: Quais, por exemplo?

Argelina: Se houver três partidos ideológicos representados no Congresso, pode haver três de aluguel que não vão atrapalhar a governabilidade. É preferível isso. Partido pequeno e número de partidos não atrapalha a governabilidade em lugar nenhum do mundo.

Valor: Então a reforma não deveria trazer grandes alterações.

Argelina: Nosso sistema político tem um bom funcionamento. Óbvio que há falhas e deve ser aperfeiçoado. Não acho que seja perfeito, assim como não é em nenhum lugar. Não existe a idéia de democracia consolidada. Achar que os EUA e a Inglaterra têm democracias consolidadas é errado. Todas as democracias estão em consolidação. O ideal de democracia está lá e nunca foi atingido. Se ele é atingido ou não é uma outra história. Mas nosso sistema é muito mais representativo, muito mais aberto, permite uma entrada muito maior da população no sistema político. Então, para que reforma? Para ter sistema misto, com parte de voto local e parte de voto de opinião, que nós já temos por outros meios?

Valor: Como assim?

Argelina: Normalmente, tem-se uma visão de que há um individualismo no voto do eleitor. Uma relação pessoal do eleitor com o candidato. Mas na verdade o partido ao qual esse candidato se filia e pleiteia a candidatura tem uma enorme importância na probabilidade de ele ser ou não eleito. Nas últimas três eleições, uma média de 6% dos deputados se elegeram com voto próprio, com votação superior ao do quociente eleitoral. Diz-se que o financiamento é individual, o que não é de todo verdadeiro, porque se esquece do papel do horário partidário, do horário eleitoral e do fundo partidário. São formas de financiamento público. Acho que temos no Brasil um financiamento misto. Então, em parte, a nossa legislação eleitoral não autoriza dizer que a relação é individualista, que a única estratégia para os candidatos seja criar um laço pessoal com o eleitorado.

Valor: Não é a única?

Argelina: Os partidos têm muita importância no processo. A lista dos candidatos passa pelo crivo das lideranças partidárias e se a gente não imaginar que os dirigente partidários são irracionais eles não colocariam dois candidatos do mesmo bairro competindo um com o outro. E não é assim. É um aqui e outro em outro bairro. Nenhum partido preenche todas as vagas que poderia preencher. O cálculo não é esse. Seria um cálculo míope que não daria resultado. Então os dirigentes partidários têm que aceitar ou não candidaturas que não fortaleçam o conflito interno que poderá enfraquecer a legenda.

Valor: Mas ao final o eleitor não acaba votando em uma pessoa?

Argelina: Existe uma alta porcentagem de identificação partidária no Brasil e ela é alta em comparação com outros países. Temos dados do Ibope e do Datafolha que mostram um índice de identificação de 60% no primeiro e 40% no segundo. Quando se pergunta ao eleitor se ele vota no partido ou ao candidato, ele diz que vota no candidato. Tudo bem. Mas tem um cientista político americano que afirma que essa disputa entre os candidatos do mesmo partido é maior do que a disputa com os candidatos de outros partidos. Diz que é assim porque é mais fácil tirar voto de uma pessoa do mesmo partido do que de outro porque o eleitorado tem uma associação com as aspirações e as imagens do partido que faça com que ele não queira votar em um outro partido. Esses índices de identificação e a formulação desses conceitos me dá margem a dizer que se tem primeiro uma preferência partidária e depois, dentro do partido, escolhe-se o candidato que julgar melhor.

Valor: Então o Brasil tem voto partidário?

Argelina: Tem voto partidário, além do voto de legenda. A gente não pode dizer que o único voto partidário é o de legenda. E você pode ter uma escolha partidária mesmo votando em um candidato. Prefiro votar em um partido e vou procurar um candidato dentro de um partido. E isso é ainda compatível com um estudo que tem sido feito sobre as bases eleitorais dos candidatos. A minoria dos candidatos são eleitos pelo que você poderia chamar de voto local. Mostra que a estratégia do candidato no Brasil não é única, tem estratégias múltiplas, você pode procurar também o voto difuso, ideológico, tanto quanto o local.

Valor: O voto pessoal no Brasil é minoritário?

Argelina: Se não é minoritário, pelo menos não é em uma proporção que prejudique o funcionamento do sistema político brasileiro. Hoje em todos os partidos tem voto pessoal e voto de opinião. O Maluf é um voto pessoal associado à opinião, mas não pode dizer que é um voto estritamente pessoal. Acho que nosso sistema eleitoral permite diferentes entradas dentro do sistema político. Que ele ainda tem algum forte componente clientelista pode ter, mas não creio que seja uma alteração radical que vá melhorar. Não vejo uma relação de causa e efeito. Acho que vai melhorando na medida em que aumenta o controle da população.

Valor: Então a mudança não passa muito pela fidelidade partidária?

Argelina: As mudanças de partido acontecem em geral dentro do mesmo bloco ideológico, não é para o partido principal do governo. Então esse movimento é dentro de uma margem que não vou dizer que não é considerável -20% é uma margem que não é boa- mas ela não afeta, como se imagina, o sistema político como um todo. Essa inchaço de partidos na base do governo tem muito a ver com o papel do Executivo no Brasil, que tem poderes institucionais muito fortes. A ação individual do deputado é muito pequena e muito marginal. O que organiza o processo legislativo no Brasil são os partidos, tanto na área legislativa quanto na orçamentária; e a relação deles com o governo. Diante de um Executivo forte e de partidos fortes é muito difícil o parlamentar fazer alguma coisa. Vários projetos clientelistas passam nas comissões, como regulamentação de profissão, essas coisas. Chega lá, o Executivo veta totalmente. E nunca se derruba veto. O sistema decisório não permite que a política clientelista seja feita na medida em que as pessoas acham que ela é feita. Não estou dizendo que não tenha emenda individual, que não tenha legislação que atenda a interesse específico, mas é muito pouca comparativamente. O que eu vejo é que há um exagero de tudo e desinformação da elite política do país. As análises das propostas são superficiais. Dizer que nos outros países há poucos partidos não é verdade. Na Inglaterra e nos EUA tem dezenas de partidos que concorrem às eleições, só que o sistema eleitoral exclui todos. A visão, então, é idealizada.

Valor: Por que?

Argelina: Há duas hipóteses. De tão bem intencionados, os políticos começam a ter essa visão do que acontece no mundo. Mas também pode ser que eles querem propor grandes mudanças, criar grandes discussões, e impedir que coisas menores e mais efetivas sejam realizadas. Desvia a atenção. Pode até ter lideranças que realmente acreditem que elas vão produzir efeito, mas para certos grupos é importante porque impede que algumas mudanças menores, mas mais efetivas, não sejam debatidas.

Valor: Como o quê?

Argelina: Uma prestação de contas mais efetiva, mais transparente e menos desburocratizada. Um limite menor nas doações, pois 2% do faturamento é muita coisa. Com essas coisas você teria mais chance de aumentar o controle e diminuir a corrupção. Agora, entregar o dinheiro todo na mão das lideranças partidárias que vão formar uma lista, acho terrível. Não tem nenhuma lógica dentro do raciocínio de combate à corrupção. A atuação da Justiça Eleitoral é muito elogiada no âmbito do acesso ao voto, da apuração , da transparência dos resultados, mas na fiscalização ainda está faltando.