Título: Acabar com a fome abre portas de saída
Autor: Silva, José Graziano da
Fonte: Valor Econômico, 02/04/2007, Opinião, p. A16

A luta contra a fome e a miséria é um desses aparentes consensos políticos que, ao se transformar em agenda de Estado, cobra uma espiral ascendente de transformações talvez não tão óbvias nem tão rápidas quanto sugere sua ecumênica aceitação inicial.

Uma das primeiras bifurcações do caminho questiona a possibilidade de se combater a fome e a pobreza sem institucionalizar as ações emergenciais num arcabouço mais amplo, e permanente, de uma política de Estado de segurança alimentar que garanta a todos - e não somente aos mais pobres - uma alimentação digna e saudável, por todo sua vida.

Representantes de oito governos da América Latina e Caribe (ALC) e de três agências da Nações Unidas reuniram-se em dezembro de 2006 no Chile, num seminário promovido pelo escritório regional da FAO em parceria com o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), para dar a esse debate a largueza de horizonte histórico que ele requer.

A fome é o núcleo duro da pobreza continental. Mais de 53 milhões de pessoas vivem sua rotina na América Latina e no Caribe, acompanhadas por outros 226 milhões de habitantes que lutam para sobreviver com menos de US$ 2 por dia. Cerca de 58% da infância regional cresce em meio a esse duelo desigual que tira a vida de 190 mil crianças todo ano, vítimas de "balas perdidas" disparadas por doenças e enfermidades. Elas poderiam ser salvas facilmente com equilíbrio alimentar e nutricional.

O que entendemos por fome é o primeiro dente de uma intrincada engrenagem de banimentos que se movimenta em múltiplas frentes e assume distintas formas à medida em que se enraiza na vida de indivíduos, famílias, comunidades e nações. Em sociedades marcadas pela pobreza e desigualdade extremas, como boa parte da América Latina, o crescimento é um lubrificante de inestimável importância na negociação por maior justiça social. Mas seria um erro encará-lo como panacéia que sazonalmente reconforta consciências culpadas, prometendo assumir responsabilidade pela redenção de todos males sem alterar posições relativas no acesso à riqueza.

Para quem ainda acredita em caixas de Pandora às avessas - sejam elas o crescimento do PIB per capita, a educação superior ou muros altos adornados de cercas elétricas - vale ressaltar um exemplo extremo de convívio ente abundância e seu contrário. Nos EUA, 35 milhões de americanos, ou 12% da sociedade que concentra 38% do PIB mundial, passaram fome em algum período de 2006. Destes, 26 milhões dependem mensalmente de refeições públicas ou doações privadas; 11 milhões de crianças americanas estão subnutridas e, em quase 1 milhão de lares, faltou alimento por dias seguidos. Nos últimos cinco anos, as estatísticas da fome nos EUA têm evoluído de forma preocupante, distanciando-se mais da meta oficial de reduzi-la a 6% do conjunto da sociedade.

Superada a crença em panacéias, o combate à fome passa a ser uma "porta de saída" em si. Uma travessia crucial para escapar do labirinto ardiloso e escorregadio da exclusão. A simplicidade do termo "portas de saída" com o qual se cobra, de forma legítima e algo ansiosa, um rápido desfecho para os programas sociais, sugere o desconhecimento de questões-chave embutidas no percurso de um longo processo de busca da cidadania. Se isso vale para países ricos, com muito mais propriedade se aplica à sociedades fraturadas por desequilíbrios seculares. Seja qual for o caso, para que possa cumprir sua função transformadora, uma estratégia de segurança alimentar deve, em primeiro lugar, adquirir o estatuto de ferramenta permanente da sociedade, portanto dotada de legitimidade para se tornar um compromisso de Estado, não de governos. Pioneira na região, a Argentina aprovou em 2003 leis de segurança alimentar e nutricional, como fez a Guatemala em 2005 e o Brasil em 2006.

As políticas emergenciais de ajuda alimentar e/ou de transferência de renda abrem a primeira fresta da porta. A boa notícia é que essas políticas se estendem com rapidez pela América Latina e o Caribe, impulsionadas por resultados que atendem às expectativas da renovação política continental. Os beneficiários do programa peruano "Juntos" gastam 50% do que recebem na compra de alimentos. No Brasil, 94% das crianças alcançadas pelas ações do Fome Zero, entre elas o Bolsa Família, já fazem três refeições por dia. Em alguns casos, os resultados de programas emergenciais, como os do colombiano "Acción Social", que nasceu para responder à crise econômica de 1999 (quando o PIB nacional caiu 4,4%), mostraram-se tão animadores que o programa passou a permanente.

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As condicionalidades, contrapartidas e co-responsabilidades abrem o segundo flanco na arquitetura da exclusão. No Panamá, os "Bônus Familiares para Alimentos" exigem compromissos básicos com a saúde. E pelo menos um adulto das famílias beneficiadas participa, obrigatoriamente, de cursos de capacitação agrícola.

Na República Dominicana, um cartão magnético permite comprar uma cesta básica de alimentos nos "colmados" cadastrados, formando uma rede de pequenos pontos de compra e venda que estimula a produção local de alimentos. Faz parte desse esforço também documentar populações que estiveram até nossos dias invisíveis. No Chile e na Colômbia, esse resgate inclui certa solenidade simbólica, com a assinatura de um contrato social de direitos e deveres entre o Estado e as famílias.

Dizer que se assiste à recuperação do tecido social em vários pontos do continente deixa de ser uma metáfora otimista quando se verifica que uma nova institucionalidade avança progressivamente para reduzir a fragmentação característica do mundo da pobreza e, não por acaso também, da ação social do Estado. No Brasil essa fragmentação retardou sobremaneira os primeiros passos do Fome Zero, pela inexistência de um cadastro confiável, lacuna que felizmente vêm sendo sanada no governo Lula, instrumento indispensável para promover a articulação entre ações de segurança alimentar, saúde e educação voltados para a inserção das famílias no desenvolvimento economia local.

No Chile essa integração foi alcançada com êxito no âmbito do programa "Chile Solidário" que reúne mais de 40 linhas de ação, incluindo um programa de estímulo à produção de subsistência. A exemplo do Fome Zero, seu amplo guarda-chuva permite agrupar políticas mais adequadas às necessidades regionais, incluindo o estímulo à produção de auto-consumo em algumas delas.

A espiral ascendente de que falamos no início atinge hoje um ponto de mutação em diferentes países da ALC, que requer a progressiva democratização das decisões para que as políticas públicas possam ampliar seu alcance e, sobretudo, produzir o efeito emancipador desejado. Em todo continente, e o Brasil é um caso pedagógico, uma das provas cruciais dessa travessia será travada nas periferias conflagradas das grandes metrópoles, espécie de terra devoluta apartada pelo crime, a pobreza e o vácuo republicano. Não há receitas prontas a seguir, mas parece certo que a presença do Estado aí requer ações inéditas de promoção da cidadania para que possa se efetivar. Onde a comunidade carece de voz e articulação, as portas de saída permanecerão fechadas e nenhum programa de transferência de renda conseguirá ir além do estágio assistencialista.

A comunidade, por sua vez, só voltará a ser relevante na vida das populações pobres, a ponto de ser reconhecida como anteparo ao clientelismo e ao crime organizado, quando se tornar um interlocutor com voz e poder para influenciar decisões que envolvem o seu destino. Ao contrário do que reverbera o discurso neoliberal, assistencialismo é sintoma de Estado mínimo, de democracia fraca e cidadania tolhida, uma circularidade que penaliza duplamente os mais humildes.

Quando o presidente Lula manifesta sua ansiedade por destravar o crescimento para equacionar simultaneamente diferentes ângulos da exclusão, no fundo é disso que se trata. De habilitar o Estado a quebrar o círculo de ferro que aprisiona populações pobres num redil de inseguranças múltiplas, de modo a libertá-las para enxergar sentido na democracia e recuperar a esperança no crescimento econômico. Implantar mecanismos de controle social na política de segurança alimentar entendida como política de Estado é o primeiro passo nessa caminhada.

José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e o Caribe.