Título: A miopia do mercado em relação à política fiscal
Autor: Silva, Alexandre da e Oswaldo, José
Fonte: Valor Econômico, 03/04/2007, Opinião, p. A14

A política fiscal adotada a partir de 1999 pode ser considerada crível, pois o governo tem obtido sucesso na convergência das expectativas (Relatório Focus) dos agentes em relação à manutenção de um regime de política fiscal austero. Contudo, menciona-se que existe a possibilidade de assimetria de informações na execução da política fiscal, o que pode, ao menos no curto prazo, privilegiar os policy makers diante dos agentes de mercado.

Por exemplo, no Brasil, um superávit primário de 4,25% do PIB não necessariamente significa uma economia orçamentária primária de 4,25% do PIB, em sentido diferente ao que alguns agentes podem inferir. A título de ilustração, é possível que esses 4,25% do PIB signifiquem uma economia orçamentária primária de 3% do PIB. Neste artigo, quando a economia orçamentária primária realizada é menor que o número de superávit primário divulgado, diz-se que há inconsistência desse número.

Nesse sentido, a fim de avaliar a sustentabilidade da política fiscal, sobretudo no médio e longo prazo, cresce a necessidade de se observar indicadores alternativos que não se resumem apenas ao fluxo de receitas e despesas e à relação dívida pública/PIB. Caso contrário, os agentes correm o risco de avaliar a política fiscal de forma míope. Assim, em texto para discussão a ser publicado pelo Ipea, avaliamos a estimativa do float, que é a diferença entre o valor das despesas primárias inscritas em restos a pagar (despesas realizadas em determinado ano, com pagamentos postergados para o ano seguinte) no final do ano e o valor dos restos a pagar que são pagos no exercício financeiro.

Ao se considerar o float, nota-se que existe uma diferença entre o resultado primário no conceito de caixa e a economia orçamentária efetiva do governo, i.e, o resultado primário que utiliza a despesa no conceito de competência. Quando se exclui o float do resultado primário no conceito de caixa, tem-se uma proxy do resultado primário que utiliza a despesa no conceito de competência.

-------------------------------------------------------------------------------- Na formação de suas expectativas, o mercado observa apenas o número do superávit primário e o nível da dívida pública --------------------------------------------------------------------------------

Desde que maior float necessariamente significa maior esforço fiscal no futuro, do ponto de vista do gestor público, quais seriam os benefícios em se aumentar de forma persistente o float? Em virtude de no Brasil as despesas só afetarem o resultado primário quando são efetivamente pagas, o governo costuma segurar o pagamento de um ano para o outro para gerar um superávit primário mais elevado. Isso permite mostrar que está sendo feito um esforço fiscal maior, quando o que de fato ocorreu foi a postergação do pagamento de despesas que já foram realizadas.

Destaque-se que existem duas formas de pagar os restos a pagar: 1) utilizar receita corrente primária, o que significa que esse pagamento é contabilizado como uma despesa, pressionando o resultado primário e, conseqüentemente, comprometendo despesas que haviam sido autorizadas para o ano corrente, que devem ser postergadas, gerando novamente restos a pagar, caso não haja um aumento substancial da receita; 2) diminuir o superávit primário, o que implica aumentar as necessidades de financiamento (endividamento), obrigando o governo a lançar títulos no mercado em conseqüência do pagamento dos restos a pagar. Essa última operação transforma uma dívida flutuante em dívida fundada e, em conseqüência disso, aumenta a Dívida Líquida do Setor Público consolidado (DLSP). É por isso que se denota o aumento do superávit primário via incremento de float como algo inconsistente, pois ou se tem um impacto negativo na execução da programação financeira do ano seguinte ou se aumenta a DLSP.

Em 2003, os analistas econômicos foram surpreendidos com o anúncio de uma meta de superávit primário de 4,25% do PIB, ante a meta de 3,75% do PIB até então vigente. Nos anos 2003, 2004, 2005 e 2006, a meta de resultado primário do setor público consolidado foi alcançada com êxito, destacando-se que, com exceção de 2006, a meta de superávit primário do governo central (governo federal e Banco Central do Brasil), que é de 2,45% do PIB, também foi alcançada com êxito. Será que esse êxito significa maior consistência?

De acordo com a tabela, com exceção de 2000, desde 1999 o float persistentemente ajuda o governo central a obter maiores metas de superávit primário, de modo que, em todos esses anos, a economia orçamentária auferida (resultado primário ajustado) foi menor do que o resultado primário divulgado, o que indica que as metas de superávit primário foram alcançadas de forma inconsistente.

Ainda em relação à tabela, no período 2003-2006, ao descontar-se o float e obter-se o resultado primário ajustado, percebe-se que em nenhum ano obteve-se a economia orçamentária de 2,45% do PIB, que desde 2003 é a meta oficial de superávit primário do governo central estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Portanto, pode-se afirmar que, no período 2003 a 2006, apesar da maior meta de superávit primário estabelecida, não houve alteração na consistência da política de superávit primário em relação ao período 1999 a 2002.

Assim, conforme a definição utilizada, não há dúvidas de que o superávit primário do governo central tem sido obtido de forma inconsistente. Em nossa pesquisa, investigamos se a inconsistência desse superávit afeta a Expectativa do Superávit Primário do Setor Público consolidado e/ou a Expectativa da DLSP. Os resultados empíricos de nossos modelos indicam que, na formação de suas expectativas, o mercado observa apenas o número do superávit primário e o nível da dívida pública, desconsiderando a consistência do superávit primário, o que sugere certo grau de miopia em relação à política fiscal brasileira.

Alexandre Manoel Angelo da Silva é economista do Ipea. alexandre@ipea.gov.br.

José Oswaldo Cândido Júnior é economista do Ipea. jose.oswaldo@ipea.gov.br