Título: Inflação a galope é inimigo que pode atropelar Chávez
Autor: Totti, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 18/01/2007, Internacional, p. A8

Camelôs do centro de Caracas começaram a vender ontem cedo novas camisetas com a estampa do comandante Hugo Chávez. Já se esgotaram as que traziam o seu rosto e os dizeres "Chávez no se vá", Chávez não vai embora, usadas na campanha da reeleição em 3 de dezembro. As novas - a 10 mil bolívares, menos que US$ 5 - já são para a campanha de 2013. O rosto é o mesmo, mas a mensagem mudou: "Chávez con más de 10 millones de votos". É a meta de apoio popular anunciada por ele mesmo. Conseguiu 7,6 milhões em 2006 (63,1%). "Vamos para os 10 milhões de votos em 2013, 70%", disse. Ao meio-dia só havia uma camiseta no estoque de Isabel, vendedora ambulante que expõe sua mercadoria na calçada em torno da estação do metrô Capitólio. Outra só seria encontrada uma quadra adiante, escondida numa sacola, pois Cármen, a jovem vendedora, a reservara para o namorado. A julgar pela demanda de camisetas, já está ganha a eleição para um terceiro mandato daqui a sete anos.

É bom, porém, esperar que se chegue ao rio para tirar os sapatos, como dizem no Caribe. Todos os planos de Chávez para criar um novo país e uma nova América Latina podem ser destruídos por um inimigo implacável, mais poderoso que a apática, dividida e assustada oposição, que a conservadora hierarquia da Igreja e, até, do que ele chama de "imperialismo". É um inimigo interno, conhecido de todos: inflação. Como um esquadrão de cavalaria, ela, que marchava a trote de 14,4% ao ano em 2005, passou a galopar num ritmo de 17% em 2006. E acelera em velocidade de carga, segundo se pode constatar no próprio mercado popular das calçadas de Caracas. Camisetas como as de Chávez - não é ele que as manda confeccionar, é o mercado com seu olfato para as oportunidades - eram vendidas a 7 mil bolívares no ano passado.

O governo bolivariano e "socialista" não ignora a ameaça e, por isso, Chávez se articula internacionalmente para que o petróleo se mantenha acima de, pelo menos, US$ 50 o barril, e, internamente, para que a arrecadação do Estado aumente. Com os cofres públicos cheios, poderá continuar a política de investimento na área social, que distribui renda e concentra votos. Com petróleo alto poderá sustentar a importação de bens que o país não produz, e que são muitos, desde a água com gás a medicamentos. Enfim, o objetivo é manter as reservas no nível atual de US$ 37,3 bilhões (mais de US$ 1 milhão per capita, num país de 30 milhões de habitantes) e sacar daí para investimentos, a cada ano, tudo o que superar os US$ 29 bilhões, patamar considerado de segurança - o suficiente, por exemplo, para pagar de uma só vez toda a dívida externa do país, se necessário.

É também pensando em alternativas à queda brusca do petróleo que este agitado ex-tenente-coronel pára-quedista, experimentado autor e vítima em duas tentativas de golpe de Estado, se protege por todos os flancos: a associação com o Irã e outros países petroleiros torna mais sólida a defesa dos preços do maior produto de exportação da Venezuela; o ingresso no Mercosul permite adquirir, a tarifas preferenciais, quase tudo que a Venezuela necessita do exterior. Da Argentina, já vêm a carne e o vinho que lideram os pedidos em seus restaurantes de luxo; do Brasil, celulares e equipamentos para construir estradas e pontes.

E ganham os dois lados. Em 2002, o fluxo comercial entre Brasil e Venezuela era de US$ 1,429 bilhões, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do Brasil (MDIC). Em 2005, foi para US$ 2,472 bilhões e fechou 2006 com US$ 4,156 bilhões. Em 2002, o Brasil importava US$ 633 milhões e exportava US$ 796 milhões. A partir daí, os saldos favoráveis ao Brasil se multiplicaram. As exportações foram de US$ 2,216 bilhões em 2005, e as importações, de US$ 256 milhões. Em 2006, exportações brasileiras de US$ 3,556 bilhões; importações, 591 milhões.

Entre as vendas brasileiras o predomínio absoluto em 2006 foi de bens industrializados: US$ 3,221 bilhões. Só de produtos que o MDIC registra como "terminais portáteis de telefone celular" foram US$ 699 milhões. Contribuiu para isso, obviamente, o esforço exportador brasileiro, mas algum crédito deve ser contabilizado ao apoio de Brasília a Chávez no seu momento mais difícil: o imediato não-reconhecimento, depois que os EUA já o tinham feito, do governo imposto por um golpe de Estado que durou só dois dias. Três anos depois, Chávez foi instado a não vir, entusiasmado e agradecido, intrometer-se na campanha eleitoral brasileira. Não se conteve, porém, e, em reunião dos chefes de Estado sul-americanos, afirmou "Lula vai ganhar", com a mesma segurança com que profetiza agora sua própria reincidência em 2013.

Há pragmatismo no governo Chávez, além de discursos. O petróleo caro é combustível para a eloqüência e a coragem, mas mesmo com a Cuba de Fidel Castro, seu amigo mais dileto na cadente constelação de líderes marxistas-leninistas ainda vivos, a aproximação traz mútuo benefício. A Venezuela fornece o petróleo de que Cuba precisa, e dizem que o fornecimento é de graça, ou quase, mas a retribuição que recebe de Fidel é também importante. São milhares os médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde enviados para trabalhar nas "missões bolivarianas" espalhadas pela Venezuela, atendendo a população de baixa renda (dados do Instituto Nacional de Estatísticas indicam que a Venezuela ainda tem 2,3 milhões de famílias na linha de pobreza, 639 mil sem recursos para consumir 2 mil calorias por dia).

-------------------------------------------------------------------------------- Governo não ignora a ameaça da inflação e articula para que o petróleo se mantenha acima de US$ 50 o barril --------------------------------------------------------------------------------

No ano passado, segundo o Ministério do Poder Popular para a Saúde (que tem novo nome e novo ministro, Adán Chávez, irmão do presidente), os cubanos realizaram 28 milhões de consultas domiciliares e 305 mil cirurgias (102 mil de catarata). "São tantos os aviões trazendo e levando médicos entre Havana e Caracas que se chocariam no ar, não fosse a habilidade dos pilotos e dos controladores de vôo", brinca Chávez. O salário dos "misioneros" é pago por Cuba, que, assim, assegura ocupação para uma mão-de-obra de alta escolaridade e baixo mercado de trabalho. Chávez banca o resto.

Para a Nicarágua de seu amigo sandinista Daniel Ortega, Chávez acena com a instalação de uma refinaria e a chegada de um oleoduto já em construção desde a Colômbia, mas vai comprar o milho e o amendoim da diminuta república centro-americana, que a Venezuela precisa e que os EUA já não querem importar por pressão dos produtores do Meio-Oeste.

Hugo Chávez anuncia que vai também economizar o dinheiro público, a começar pelo seu próprio salário e o de todos os altos funcionários federais. "Descobri que há gente no serviço público ganhando 30 milhões de bolívares (US$ 13.953, ao câmbio oficial). Vamos mexer nisso", anunciou no seu discurso de posse e deu apoio ao projeto de um deputado chavista que já apresentou projeto na Assembléia Nacional para um teto de 3 milhões de bolívares no salário de todo o serviço público, inclusive o dos próprios deputados. "Para mim bastariam 800 mil bolívares, um soldo de coronel", diz o presidente.

O governo não pretende aumentar a carga tributária, segundo informou o novo titular do Ministério do Poder Popular para as Finanças, Rodrigo Cabezas. "Aumentamos a fiscalização, num país em que há muito tempo ninguém pagava imposto", disse. A cobrança do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), executada no momento da compra, aparenta ser, realmente, severa. A Venezuela é um dos raros países em que a balconista vai atrás do cliente para entregar-lhe a nota fiscal, detalhada, com os 14% do IVA explicitados (o mesmo ocorre em Pequim, mas lá existe a "raspadinha" com prêmios para o consumidor). A exceção em Caracas são os motoristas de táxi, que, como em todos os países, não gostam de dar recibo ou entregam a nota em branco para o passageiro preencher. (Serviço: em restaurantes devem ser pedidas notas separadas antecipadamente, não haverá duplicatas de comprovantes de despesa, mesmo se ela for dividida entre o grupo).

Ao mesmo tempo se cortaram benefícios para a importação de supérfluos ou produtos fabricados no país, como carros de luxo, barcos, perfumes, geladeiras de quatro portas, telas de plasma ou cristal líquido de televisores, papel higiênico. Os interessados não contarão com o dólar oficial a 2.150 bolívares para a importação. O dólar no paralelo, a que os importadores de supérfluos terão que recorrer, deu um salto nos dias que se seguiram à posse do reeleito presidente, na quarta-feira passada, mas parecem exagero as notícias de que teria chegado a 4 mil bolívares. (Às 11 horas da noite do dia seguinte, no aeroporto de Maiquetía, estava sendo oferecido a 2.800 e, logo depois, no hotel, a 2.400 - e assim permaneceu, com pequenas oscilações, até ontem). "É um trouxa quem pagar 4 mil bolívares por US$ 1", repetiu Cabezas.

O maior rigor do governo, porém, está concentrado em um só contribuinte, o maior de todos: a Petróleos de Venezuela S.A (PDVSA) . Em 2002, antes de intervir na empresa e entrar em conflito com sua diretoria e o sindicato dos petroleiros - uma greve de protesto paralisou o país, houve ocupação militar das refinarias, o presidente do sindicato está até hoje refugiado no exterior - , a PDVSA, integralmente estatal, sem acionistas minoritários como a Petrobras, transferia menos de US$ 900 milhões ao governo. Em 2006, segundo seu atual presidente (e ministro do Poder Popular para Petróleo e Energia), Rafael Ramírez, em royalties, imposto de renda e outros impostos e taxas, a PDVSA entregou ao fisco US$ 29,937 bilhões, de uma receita total de US$ 55,063 bilhões. Além disso, aplicou US$ 6,855 bilhões no Fundo de Desenvolvimento Nacional (Fondem), uma espécie de BNDES para o financiamento de projetos estatais e privados voltados para aumento da produção e do emprego. O Banco Central, com seu "excedente" de reservas, é o outro grande aportador do Fonden, com US$ 8,7 bilhões a serem transferidos em 2007. "As reservas não são do Banco Central, são da nação, e têm de ser aplicadas na construção de metrô que ligará Caracas ao aeroporto de Maiquetía, em estradas, moradia popular. Não há farra com a renda petroleira", disse Chávez, ao defender a sua política de petróleo ante a Assembléia Nacional.

Não é o que pensa a oposição. Todos os jornais - menos um, o "Vea", governista - insistem em que o governa "despilfarra" (desperdiça) os dólares que acumulou nos anos de bonança petroleira. Administrou mal e investiu pouco na PDVSA, tumultuou o ambiente de negócios das empresas privadas remanescentes no setor com ameaças de estatização - que agora se confirmam - e o resultado é que o investimento direto de Chávez no exterior é superior ao de estrangeiros no país. O jornal "El Nacional", ontem, publicava em manchete que, nos três primeiros trimestres de 2006, o saldo líquido da balança de pagamentos teria sido negativo em US$ 2,7 bilhões.

Mereceu destaque nos jornais e na televisão oposicionista a opinião do diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Rodrigo de Rato, para quem não importa se petróleo, eletricidade, telecomunicações, estejam ou não em mãos do Estado, mas, sim, o "ambiente de investimentos". Sem isso, segundo Rato, não haverá nem desenvolvimento nem combate à inflação. E colocou em dúvida se o governo terá como pagar as indenizações pela estatização e continuar a investir (a queda nas bolsas de mais de mais de 30% no preço das ações das privatizáveis estabelece um paradoxo: o governo terá de pagar muito pouco pelas estatizações). Rato critica a anunciada decisão de retirar a autonomia do Banco Central e atribui o controle da inflação no Brasil, na Colômbia e no México, à preservação da autonomia. Chávez ignora, de público, essa observações. Para ele, mídia e FMI fazem parte de um mesmo complô, "capitalista e oligárquico".

O certo é que, com a renda do petróleo, a Venezuela, quinto maior exportador mundial, alcançou em 2006 um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 90 bilhões, com crescimento de 10,3% sobre o ano anterior. "Completamos 13 trimestres com crescimento acima de 10%. Competimos com a Argentina e com Cuba na América Latina. Por sinal, os três rasgamos o libreto do FMI." O presidente da PDVSA, Rafael Ramírez, nega que a empresa seja mal administrada e diz que os investimentos na empresa em 2006 chegaram a US$ 5,940 bilhões, mais que 10% da receita bruta. Até setembro último, as exportações da Venezuela haviam atingido US$ 49 bilhões, mais 80% delas atribuídas às vendas de petróleo. Se o preço do barril voltar para mais de US$ 50 na cesta de exportação da Venezuela, passado este período de queda acentuada - a maior em 19 meses -, as apostas do governo se voltarão para as potencialidades das reservas confirmadas da Bacia do rio Orinoco, que seriam de 316 trilhões de barris, as maiores do mundo. É um óleo extrapesado, que necessita caro tratamento de melhoria para se tornar exportável a bom preço. A PDVSA, segundo Ramírez, pretende investir US$ 15,2 bilhões nos 27 blocos em que a área foi dividida, e cuja exploração começará em 2012, ao final deste segundo mandato de Chávez. Ramírez diz que a produção da estatal não diminuiu por causa de ineficiência de seus técnicos, mas sim porque essa foi uma decisão da Organização dos Países Produtos de Petróleo (Opep), que a Venezuela apoiou.

Esta é a situação dos números, e eles servem ao governo e à oposição. Mas há um fator político que pode mudar o quadro do que Chávez chamou de "pinceladas matemáticas". Ainda não se sabe o que serão os conselhos comunais propostos por Chávez em sua anunciada "reforma da geometria do poder". Aparentemente, serão representativos de setores da população até aqui com pouca participação nas decisões de governo. Despertados e estimulados desde Miraflores, o palácio do presidente, dificilmente estes conselhos deixarão de pressionar para aumento dos gastos, para cumprimento de promessas feitas em campanha. Mais do que a revolução apregoada por León Trotsky e apregoada por Chávez, o permanente por enquanto na Venezuela é o clima eleitoral.