Título: A contabilidade fiscal e o superávit primário
Autor: Giambiagi, Fabio
Fonte: Valor Econômico, 03/01/2007, Opinião, p. A15

Avolumam-se os sinais de que, no futuro, o superávit primário do setor público será inferior à meta de 4,25% do PIB adotada nos últimos anos. Embora neste espaço eu tenha me manifestado em defesa da preservação da meta - ou mesmo, no passado, da sua elevação - seria equivocado argumentar que, no cenário que se vislumbra de redução dos juros e dentro de certos limites, tal redução colocaria o equilíbrio macroeconômico em risco. A rigor, é possível mostrar que, se os juros caírem, nos próximos anos será possível reduzir o resultado primário e, mesmo assim diminuir as NFSP, pelo menor peso dos juros.

Dada a citada premissa, porém, é conveniente refletir acerca de como proceder a essa flexibilização. O ponto que iremos defender aqui é que o país deveria aproveitar a oportunidade para ajustar a contabilidade fiscal ao padrão observado em outros países. Isso implica:

1) adotar como referência da relação dívida pública/PIB o PIB nominal corrente e não o "PIB valorizado a preços do fim de período";

2) desconsiderar, na estatística da dívida, a base monetária; e

3) trabalhar com o conceito de "Governo Geral", em substituição ao do "setor público" no cálculo do resultado fiscal oficial, o que implica retirar da estatística as estatais não dependentes.

No caso do primeiro ponto, para uma inflação de 4% e uma dívida de 50% do PIB, a mudança implica deixar de "engordar" o denominador da relação dívida/PIB em torno de 2% - diferença entre os preços médios do ano e os de dezembro - o que significa acrescentar 1% do PIB à relação entre a dívida e o PIB. Se, em 2007, ela poderia cair 2%, com a mudança cairia apenas 1% do PIB. Não há problemas quanto a isso. A alteração pode ser adotada em 2007.

-------------------------------------------------------------------------------- Quando o Brasil começou a apurar as contas públicas, no começo dos anos 80, estatais eram responsáveis por mais da metade da dívida pública --------------------------------------------------------------------------------

A segunda proposta é simples. Quando se fala em "dívida" pensa-se em títulos que rendem juros e a base monetária é uma forma de financiamento a custo zero. A não ser pelo papel que a variável desempenha para financiar o desequilíbrio fiscal, não há justificativa para que ela seja parte da dívida pública. O Banco Central (BC) continuaria a publicar o saldo da variável nas estatísticas monetárias, portanto não haveria perda de informação. Como, por conta disso, a dívida pública cairia em torno de 5% do PIB, o BC poderia anunciar a exclusão da variável com antecedência de dois anos, dando tempo a todos para se acostumar com o novo padrão. O anúncio poderia ser feito em 2007, para ter vigência em 2009.

A terceira proposta merece maiores explicações. O objetivo de medir o déficit público é avaliar o efeito da política fiscal sobre a demanda agregada. Com o perfil que têm hoje as nossas contas públicas, o fato é que, se o preço do petróleo cai no exterior, a Petrobras continua comprando parte do petróleo fora do país mas não repassa o menor preço ao consumidor, seu lucro e seu superávit primário aumentam. Agora vamos pensar: o que aconteceria com a demanda agregada se a Petrobras fosse privada? Exatamente a mesma coisa. E, entretanto, a forma em que o efeito é captado nas estatísticas fiscais pelo fato de a empresa ser estatal é diferente. Hoje, na prática, o gasto com servidores aumenta, mas o maior lucro da Petrobras pode compensar o maior gasto público. Há algo de irrealista nisso.

Quando o Brasil começou a apurar as contas públicas com a contabilidade que temos até hoje, no começo dos anos 80, as estatais eram responsáveis por mais de metade da dívida pública. Não considerá-las como parte das estatísticas fiscais corresponderia a "colocar a sujeira para baixo do tapete". Vinte e cinco anos depois, a situação das estatais é muito diferente e não mais se justifica manter as mesmas normas contábeis de 1981/1982.

A proposta é que o BC anuncie em 2007 que, entre 2008 e 2009, irá retirar gradualmente nas "Notas para a Imprensa" o resultado das estatais não dependentes. Não haveria perda de transparência, uma vez que seria um passo similar ao que o país deu há 10 anos, quando o resultado fiscal oficial passou a ser o nominal e não mais o operacional, dado este que, porém, continuou sendo apurado e disponibilizado através da Internet. O BC apenas excluiria a variável do resultado oficial.

A instituição teria o ano de 2007 para desagregar o resultado das empresas entre "dependentes" e "não-dependentes". As primeiras teriam a sua estatística divulgada em forma desagregada como parte do resultado dos governos regionais e do Tesouro, como é feito hoje no apêndice da Nota do Tesouro sobre o resultado fiscal com o ajuste metodológico de Itaipu. Por sua vez, as não dependentes - empresas como Petrobras, Eletrobrás, Sabesp, Cemig e algumas outras que preenchessem certos requisitos de boa governança - seriam excluídas do resultado oficial.

Pela proposta, as empresas estaduais e municipais deixariam de ser parte do resultado fiscal em 2008 e as federais em 2009. No momento em que as federais fossem excluídas da estatística, como elas são credoras líquidas, o fato tenderia a pressionar a dívida. Entretanto, como isso se daria junto com a retirada da base monetária, a dívida pública líquida poderia continuar a cair.

O superávit primário, estabelecido em 4,25% do PIB, cairia para algo em torno de 3,5% do PIB daqui a um par de anos, o que, de qualquer forma, continuaria sendo consistente com uma trajetória cadente da relação dívida pública/PIB, desde que o superávit primário do governo central e dos Estados e municípios se conserve em valores próximos aos atuais e as despesas do Projeto Piloto de Investimentos (PPI) não sejam excluídas do superávit. Além disso, a medida inibiria a pressão por mais gastos, hoje baseados no argumento de que o superávit primário de 4,25% do PIB seria "excessivo".

Estas são idéias que constituem apenas uma agenda para discussão. O BC, porém, deveria contemplar a conveniência de adotar pelo menos parte dessa agenda. Isso representaria uma espécie de "graduação" da nossa contabilidade fiscal, que se aproximaria dessa forma do resultado dos demais países.

Fabio Giambiagi, economista, co-organizador do livro "Economia Brasileira Contemporânea: 1945/2004" (Editora Campus), escreve mensalmente às segundas-feiras.

fgiambia@terra.com.br.