Título: Aquecimento global já impacta clima e biodiversidade brasileira
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 28/02/2007, Brasil, p. A2

Se o mar subir 10 centímetros na Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, os 1.300 moradores da pequena Ilha dos Marinheiros, que vivem da pesca e da agricultura, perderão 4,2% de sua área de cultivo. Se o aquecimento global for mais inclemente, e o nível das águas subir 50 centímetros, a inundação alcançaria 30% das áreas com matas nativas na região; e se o quadro tiver tons mais dramáticos, com as águas subindo 1 metro, a ilhota perde 58% de sua área agrícola. Os 284 hectares debaixo d' água significariam uma perda anual de R$ 780 mil, por hectare.

O caso da Ilha dos Marinheiros foi apresentado ontem, no auditório do Ministério do Meio Ambiente, o MMA, durante reunião da Comissão Nacional de Biodiversidade, a Conabio. Nesta sessão especial foram divulgados os resultados de oito trabalhos encomendados pelo ministério, há três anos, a mais de uma dezena de centros de pesquisa brasileiros, como forma de antecipar os problemas que virão e estruturar políticas públicas adequadas ao aquecimento global e seus múltiplos efeitos sobre a vida das pessoas, da biodiversidade à saúde, dos impactos na agricultura à economia.

A Ilha dos Marinheiros é só uma das nossas "Tuvalus" - o nome do arquipélago de ilhotas na Oceania que pode sumir do mapa como consequência da elevação dos níveis dos oceanos puxada pelo aumento da temperatura no planeta. O caso é emblemático: é só imaginar o potencial negativo dos impactos do aquecimento global sobre a costa brasileira, onde vivem 42 milhões de pessoas, 25% da população do país. Hoje, o que já se observou, é uma tendência de aumento do nível do mar de quatro milímetros ao ano; no Recife, a linha costeira retrocedeu 80 metros de 1915 a 1950, e mais de 25 metros em apenas 10 anos, de 1985 a 1995. Em projeções sombrias, se o oceano subir dois metros, um terço da Ilha de Marajó desaparece. Cidades como o Rio de Janeiro são muito vulneráveis. E por aí vai.

Outros flashes dos estudos dos cientistas brasileiros: as temperaturas podem aumentar de 3,0º C a 5,3º C na Amazônia, do cenário mais otimista ao pessimista, até 2100; 3,4°C a 4,6ºC no Pantanal; 2,2°C a 4,0° C no Nordeste; 2,3° C a 3,5° C no Sul. "Estes estudos contribuem para a tomada de decisão e a implantação de políticas de mitigação dos impactos nas áreas brasileiras mais vulneráveis", disse Marina Silva, a ministra do Meio Ambiente. "Temos que ter ação pró-ativa nas políticas públicas para fazer frente a um processo que se avizinha como avassalador."

O estudo do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, mostra o quanto este processo pode ser "avassalador". O trabalho considerou o regime das chuvas, as oscilações da temperatura, a vazão dos rios e a ocorrência dos chamados extremos climáticos, ou seja, secas e chuvas intensas. Foram abraçados dois eixos: um cenário absolutamente otimista, onde se considera que tudo será feito para melhorar o quadro do aquecimento global, e o outro, totalmente pessimista, trabalhando com a hipótese que nenhuma medida será tomada, por nenhuma nação do mundo, para melhorar a coisa.

Mesmo no quadro mais leve, a projeção indica diminuição de chuvas na Amazônia e no Nordeste. A projeção, no pior dos mundos, é uma mancha vermelha no Brasil tropical. O retrato pessimista vai da savanização da Amazônia Oriental à chance de parte do Nordeste virar semi-deserto. Ou seja, a floresta amazônica pode chegar ao final do século XXI como cerrado e o semiárido nordestino perde o semi, e vira só árido.

Na outra ponta, no Sul e Sudeste, a ameaça é também superlativa: muito mais dias de chuvas muito intensas. Os mapas põem os Estados de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul no centro das tempestades. A mudança climática pode causar aumento de malária, dengue, febre amarela e encefalite porque os insetos transmissores se reproduzem mais em climas quentes; pela água, cólera é o risco.

A temperatura média do ar no País, em 2100, pode ser de 26,3° C, num mundo de baixas emissões, ou 28,9° C, no cenário negligente. "É um trabalho de projeções, não de previsões", deixou claro o pesquisador José Marengo, coordenador do estudo do Inpe, para baixar o arrepio. "Este processo não vai ocorrer: ele está ocorrendo", iniciou João Paulo Capobianco, secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA, frisando o verbo no presente. "O Brasil é muito suscetível às mudanças climáticas. O aquecimento global vai afetar, por exemplo, nossa capacidade de produção de energia, com a matriz calcada em hidrelétricas", prosseguiu.

Outro diagnóstico, coordenado pela Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica e a Universidade de São Paulo, montou uma grande maquete da baía de Santos e São Vicente. Usando areia fina, os cientistas simulam ensaios de erosão nas praias e estudam diferentes situações de marés e ondas numa área que abriga o maior porto da América Latina e a maior cidade litorânea do estado de São Paulo. A idéia é começar a elaborar um banco de dados sobre a situação.

Num cenário extremado, o pior proposto pelo IPCC, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas (com a elevação do nível médio do mar de 1,5 metro, a situação mais crítica imaginada para o fim do século), praias vão sofrer erosão ainda mais intensa da que já se registra hoje nas Pitangueiras, no Guarujá, ou na dos Milionários, em São Vicente. O estoque das espécies de peixes na região do estuário diminuirá, assim como extensas áreas de manguezais, ricos berçários naturais, vão ser inundadas.

Com menos água nos rios, como ficam projetos como o da transposição do rio São Francisco ? "Estes estudos não têm caráter imediatista", rebateu a ministra Marina, indicando, porém, a necessidade de o governo formular um plano nacional de mudanças climáticas e reiterando que o momento exige "solidariedade entre os povos".