Título: Gordos e magros
Autor: José Graziano, Walter Belik e Maya Takagi
Fonte: Valor Econômico, 13/01/2005, Opinião, p. A8

O IBGE divulgou recentemente alguns resultados extraídos da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), o mais completo mapeamento da situação alimentar já produzido no país desde 1974. Durante um ano, uma amostra representativa de domicílios foi visitada várias vezes. Seus moradores foram pesados, e o consumo de alimentos, medido. As entrevistas incluíram questões que exigiam respostas nem sempre fáceis, como quanto ganhavam os moradores - trabalhadores informais, majoritários no país, não têm renda estável - ou ainda, quanto custavam os alimentos recebidos por meio de doações. Foi feito, então, um levantamento antropométrico (peso e altura) com os brasileiros com mais de 20 anos de idade, que somam 95 milhões de adultos. Nesse conjunto de pessoas, que representa 56% do país, 3,8 milhões de indivíduos apresentaram déficit de peso. Outros 38,8 milhões (41% desse recorte específico) exibiram excesso de peso na balança do IBGE, e 10,5 milhões foram considerados obesos. Embora a tendência à obesidade seja universal e conhecida dos especialistas, os números impressionaram a população e analistas. Tanto, que ninguém se lembrou de perguntar o que se pode afirmar para o restante da população. Quem se debruçar sobre essa publicação do IBGE, que deu origem a uma bizarra decodificação social entre um Brasil magro e um Brasil gordo, encontrará respostas à pergunta omitida. Isso porque a pesquisa também levou em conta o nível de consumo de alimentos por toda a população do país, inclusive para aquelas famílias que têm renda per capita mensal inferior a um salário mínimo e não consomem sequer 1.900 calorias diárias, estando, assim, muito aquém do limite de consumo recomendado pela FAO e OMS para se levar uma vida saudável. Esse Brasil de baixo, esquecido na falsa dicotomia entre gordos e magros, reúne mais de 77 milhões de pessoas. São adultos e crianças em cujas casas o IBGE constatou a inexistência de quantidade de alimentos suficiente à segurança alimentar - para não falar da qualidade, outra dimensão fundamental do equilíbrio nutricional. Muitos poderão argumentar que o Brasil de baixo alimenta-se fora da residência. A verdade é que, nessa faixa de poder aquisitivo, o consumo de alimentos fora de casa é muito pequeno e não altera significativamente o quadro dramático de privação a que estão submetidos esses esquecidos protagonistas. O mais curioso sobre esse véu de esquecimento, que recobre uma parcela da população muito maior que a de obesos, é que os primeiros dados da POF, divulgados há meses pelo IBGE, já advertiam para um quadro preocupante de subalimentação em faixas de menor renda. Vários outros dados da POF corroboram para a impressão de que, na verdade, o quadro de insegurança alimentar no país pode ser mais grave do que indicavam os parâmetros adotados em 2001, na formulação do Programa Fome Zero. O fato é que a combinação entre renda parca e dieta insuficiente de praticamente metade da população brasileira resulta no contrário do prescrito pela FAO e OMS: ou seja, acesso digno a quantidades suficientes de alimentos , qualidade e equilíbrio na composição nutricional das refeições.

Pretender arquivar o Fome Zero equivale a prescrever lipoaspiração ideológica para tratar desequilíbrios crônicos

O que mais impressiona, assim, não é montanha de dados de que ora dispomos para avaliar e discutir esse tema, mas a precipitação de algumas análises. Na pressa de desqualificar a iniciativa do governo Lula e da sociedade civil de implantar uma política de segurança alimentar no país, foi negligenciada a própria riqueza do conjunto de informações oferecido pela POF. Por considerar que a questão social brasileira é mais complexa que uma gincana entre gordos e magros, o Fome Zero foi desenhado como um grande guarda-chuva de ações desdobradas em várias frentes - emergenciais e estruturais -, todas elas articuladas em uma "proposta de política de segurança alimentar e nutricional para o Brasil". Esse é um dos motivos pelos quais o programa inclui a implantação de campanhas massivas de educação alimentar, cuja relevância foi demonstrada na POF 2003. O Fome Zero recolocou a segurança alimentar no seu devido lugar: como política pública de responsabilidade do Estado brasileiro, e uma ferramenta imprescindível de justiça social num país onde mais de 50 milhões de pessoas têm renda inferior a R$ 5 reais por dia. Pretender que os resultados antropométricos colhidos pelo IBGE passem uma borracha nessa realidade perversa ou, tão grave quanto isso, arquivem uma conquista da sociedade como o Fome Zero, equivale a prescrever uma lipoaspiração ideológica para tratar desequilíbrios crônicos do país. Em vez de extrair gordura, o risco é sugar a própria capacidade de o Brasil entender seus desafios e construir o seu futuro. Se não for "apenas" um lapso, talvez existam razões históricas para isso e elas remetem à nossa brutal desigualdade social. A verdade é que a má consciência brasileira nunca se relacionou bem com palavras como fome, pobreza e miséria. Essa indisposição não é nova. Só agora podemos dispor de uma estrutura adequada, recursos, pesquisa e pessoal qualificado para responder às diferentes formas que assume o desafio da segurança alimentar entre nós. Desqualificar essa decisão, a partir da constatação de que há mais adultos obesos que famintos, faz parte dessa tradição. Assim como faz parte dela também "esquecer", por exemplo, que, no limite, crianças que passam fome não sobrevivem até os 20 anos para serem pesadas e medidas pelo IBGE. Desafortunadamente, não faltam candidatos ao risco: 27,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros vivem em famílias pobres, e 75% da infância do semi-árido nordestino encontra-se nessa zona de perigo. Esses dados, de divulgação recente, são da Unesco e trazem novamente constatações antigas. A ironia é que eles vêm à tona quase que simultaneamente à "descoberta" precipitada de que somos um país de gordos.