Título: Paraísos fiscais crescem como nunca
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Fonte: Valor Econômico, 27/02/2007, Especial, p. A14

Se o acordo sobre o programa de armas nucleares norte-coreano vingar, Kim Jong-Il poderá voltar a curtir sua peculiar inclinação por vinhos finos e filmes hollywoodianos de sucesso. Os bancos em todo o mundo tinham rompido seus laços com a Coréia do Norte depois que os EUA, em setembro passado colocaram numa lista negra um banco de Macau acusado de fazer negócios com os norte-coreanos, dificultando o acesso do Grande Líder a moedas estrangeiras. Mas iniciativas visando relações mais normais com os EUA poderão contribuir para restabelecer o fluxo.

O sistema financeiro é o mais novo front da guerra moderna. Numa economia globalizada, o dinheiro move-se instantaneamente e anonimamente através de fronteiras. Isso pode beneficiar terroristas, traficantes de drogas e países fora-da-lei precisando de dinheiro. Está ficando cada vez mais difícil impedir o acesso dessa clientela ao crescente sistema financeiro mundial.

As agências de supervisão financeira têm outra grande preocupação. O capital desenfreado transmite não apenas dinheiro sujo, mas também crises financeiras. O enorme crescimento do uso de derivativos esotéricos e a ascensão dos fundos de hedge tornaram cada vez mais difícil entender onde está o risco financeiro, talvez porque grande parte dele está oculto em ilhas com variáveis graus de supervisão.

Mas o problema mais exasperante que a extrema mobilidade dos fluxos financeiros coloca para os governos é que, quando eles cruzam fronteiras, podem levar consigo receita tributária. Isso é particularmente grave para países ocidentais ricos cujas populações estão envelhecendo e terão de ser sustentadas quando se aposentarem. Esses países lançaram uma série de iniciativas para fortalecer o mercado financeiro internacional contra os efeitos colaterais indesejáveis da globalização financeira: crime financeiro, contágio financeiro e evasão tributária. A idéia é instar os centros financeiros em todo o mundo para que adotem as melhores práticas internacionais sobre supervisão bancária, a coleta de informações financeiras e a aplicação da lei sobre lavagem de dinheiro.

Um grupo tornou-se alvo de especial atenção: centros financeiros offshore (literalmente, ao largo da costa. OFCs, na sigla em inglês). Tratam-se, normalmente, de pequenas jurisdições, como Macau, Bermuda, Liechtenstein ou Guernsey, cuja renda predominante vem da atração de capital financeiro ultramarino. O que eles oferecem a empresas estrangeiras e pessoas ricas são impostos baixos ou mesmo nulos, estabilidade política, regulamentação e legislação que beneficiam as empresas e, acima de tudo, discrição. Países grandes e ricos consideram os OFCs como o elo vulnerável na cadeia financeira mundial.

No passado, os OFCs de fato permitiram várias operações escusas. Os críticos acreditam que sua dependência do capital estrangeiro incentiva os OFCs a fechar os olhos a crimes e fraudes empresariais dentro de suas fronteiras. Sani Abacha, da Nigéria, Mohammed Suharto, da Indonésia, e Ferdinando Marcos, das Filipinas, são apenas alguns dos líderes corruptos que saquearam seus países amparados no sigilo oferecido não apenas por certos paraísos fiscais, mas também por alguns centros financeiros onshore (dentro dos próprios países), um aspecto freqüentemente ignorado pelos que criticam as OFCs. Parte do dinheiro empregado para os ataques terroristas em 11 de setembro de 2001 foi encaminhada através de Dubai, que recentemente estabeleceu-se como centro financeiro. As falcatruas contábeis na Enron, Parmalat e Tyco foram facilitadas por complexas estruturas financeiras baseadas em OFCs (embora, também em centros onshore como em Delaware).

Mas a utilização mais evidente dos OFCs é para não pagar impostos. Muitas jurisdições offshore bem-sucedidas respeitam a lei e muitas das pessoas mais ricas do mundo e suas maiores e mais respeitadas companhias recorrem a elas de modo perfeitamente legal para minimizar quanto devem aos fiscos. Mas o mundo onshore as vê com hostilidade. Os paraísos fiscais foram acusados de engajar-se em "guerra econômica declarada aos americanos honestos contribuinte do Fisco", diz Carl Levin, um senador americano. Ele cita um estudo sugerindo que os EUA chegam a perder US$ 70 bilhões por ano para paraísos fiscais.

A Tax Justice Network, um grupo sem fins lucrativos com posições bastante críticas aos OFCs, estima que, em nível mundial, as receitas tributárias perdidas para os OFCs ultrapassam US$ 255 bilhões por ano, embora nem todo mundo acredite nisso. Os canadenses ficaram alarmados com um relatório do governo segundo o qual os investimentos diretos canadenses em OFCs cresceram oito vezes entre 1990 e 2003, para 88 bilhão de dólares canadenses (US$ 75 bilhões) - ou 20% de todo o investimento direto canadense no exterior. A maior parte desse montante foi investido em firmas de serviços financeiros, principalmente num punhado de países caribenhos.

Os negócios em OFCs estão em expansão acelerada, e em seu conjunto essas jurisdições já não estão mais nas margens da economia mundial. O dinheiro nas offshore hoje é da ordem de US$ 5 trilhões a US$ 7 trilhões, ou cinco vezes mais que duas décadas atrás, e constituem possivelmente de 6% a 8% da riqueza mundial sob gestão, segundo Jeffrey Owens, diretor de assuntos fiscais na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Cayman, um trio de ilhas caribenhas, é o quinto maior centro bancário do mundo, com US$ 1,4 trilhão em ativos. As Ilhas Virgens Britânicas (BVI, na sigla em inglês) são sede de quase 700 mil empresas offshore.

Tudo isso foi muito bom para as economias dos OFCs. Entre 1982 e 2003, elas cresceram a uma taxa média anual per capita de 2,8%, ou mais do que o dobro do crescimento do mundo todo (1,2%), segundo um estudo de James Hines, da Universidade de Michigan. determinadas OFCs tiveram um desempenho ainda melhor. As Bermudas são hoje o país mais rico do mundo, com um PIB per capita estimado em quase US$ 70 mil, em comparação com US$ 43,5 mil no caso dos EUA (ver tabela). Em média, os cidadãos de Cayman, Jersey, Guernsey e as Ilhas Virgens Britânicas são mais ricos do que a maioria dos que vivem na Europa, no Canadá e no Japão. Isso incentivou outros países com mercados domésticos pequenos a formar seus seus próprios centros financeiros para atrair dinheiro do exterior - o caso mais espetacular é Dubai, mas também o Kuait, a Arábia Saudita, Xangai e até mesmo Cartum, no Sudão, não tão distante de Darfur, devastada pela guerra.

A globalização fez crescer enormemente as oportunidades para esse tipo de negócios. À medida que as companhias tornam-se cada vez mais multinacionais, passam a ter maior facilidade para transferir suas atividades e lucros através de fronteiras e para OFCs. À medida que os ricos levam vidas cada vez mais móveis, com empregos longe de sua terra natal, mansões espalhadas pelos continentes e investimentos no mundo inteiro, eles podem manter e administrar sua riqueza em qualquer lugar. A liberalização financeira - eliminação de controles de capital e outras restrições semelhantes - tornou tudo isso mais fácil. Para isso também contribuiu a internet, ao permitir que dinheiro seja movimentado no mundo inteiro rapidamente, anonimamente e a baixo custo.

O crescimento dos serviços financeiros mundiais também contribuiu para isso. Essencialmente, os serviços financeiros não passam de administração de dados. "Tratam-se de zeros e uns", diz Urs Rohner, principal executivo operacional do banco Credit Suisse, acrescentando que "em nenhum outro setor vemos um impacto tão enorme da globalização como na área de finanças". Isso porque esses zeros e uns podem ser negociados, estruturados, emprestados e vendidos em qualquer lugar. Os lucros também podem ser contabilizados praticamente qualquer país, e estão cada vez mais migrando para os OFCs.

A crescente importância dos setor de serviços financeiros em muitas economias significa que uma parcela maior dos lucros - e de impostos a pagar - são facilmente levados para paraísos fiscais. Um estudo publicado no ano passado por Alan Auerbach, da Universidade da Califórnia em Berkeley, descobriu que em 1983 as empresas financeiras contribuíam com apenas cerca de 5% de toda a receita de impostos recolhidos pelas empresas americanas, ao passo que entre 1991 e 2003 essa parcela passou para quase 25%.

O coletor de impostos também tem de preocupar-se com companhias não financeiras que estão funcionando como tais. O principal gerador de lucros da General Electric, grande conglomerado americano que produz de turbinas aeronáuticas a plásticos, é sua divisão financeira. Companhias não financeiras operam fundos de pensão e planos de opções de compra de ações para seus funcionários em todo o mundo, gerenciam sua tesourarias numa infinidade de moedas e empregam cada vez mais produtos financeiros esotéricos, como derivativos, para protegerem-se contra riscos e levantar dinheiro. Todas essas atividades podem ser estabelecidas em OFCs - e freqüentemente o são, com a ajuda de um exército de advogados, contadores e banqueiros de investimentos.

Os OFCs são freqüentemente caracterizadas como parasitas financeiros que vivem de absorver impostos e outras receitas das economias "reais", oferecendo refúgio seguro para quem ludibria o fisco e lava dinheiro. Sem dúvida, parte disso persiste - mas isso também existe em grandes economias "reais".

Empresários e pessoas ricas insistem em que as OFCs podem desempenhar um papel legítimo na redução do imposto a pagar. A comunidade empresarial, em especial, alega que em uma economia mundial extremamente competitiva onde os regimes tributários nacionais podem ser bastante diversos, minimizar o pagamento de impostos e uma necessidade competitiva - e os OFCs são uma solução. Os próprias OFCs insistem em que são centros financeiros especializados e têm muito mais a oferecer do que apenas impostos baixos.

O principal argumento contra as OFCs é que, ao permitir que grandes companhias e pessoas ricas evitem impostos, subtraem receita tributária dos países "reais", limitando a capacidade destes de arcar com o custo dos serviços públicos e obrigando-os a tributar fatores menos móveis, como mão-de-obra, habitação e consumo. O grande risco é que a "globalização seja percebida como uma distorção que penaliza o cidadão médio", diz David Rosenbloom, ex-tributarista internacional no Departamento do Tesouro americano.

Os críticos também se preocupam que os OFCs não supervisionem com suficiente rigor as empresas dentro de suas fronteiras, o que dá aos fraudadores uma oportunidade de entrar no sistema financeiro mundial, podendo dar margem a práticas irregulares capazes de deflagrar crises financeiras mais amplas. Sem dúvida, como admitem muitas dos próprias OFCs, apenas algumas décadas atrás, a regulamentação em muitas jurisdições offshore deixavam muito a desejar, e dinheiro sujo terminava misturando-se ao limpo. Os OFCs argumentam que isso mudou e que sua supervisão é atualmente pelo menos tão boa quanto nos países "reais" - por vezes melhor.

"Libertários" dizem que a competição nas áreas de tributação, regulamentação e outras é saudável porque impede o inchaço dos governos de países maiores. Outros argumentam que os OFCs podem ser uma conseqüência inevitável da globalização.

"Mesmo que os atuais OFCs fossem de alguma maneira extintos, algo parecido surgiria em seu lugar", diz Mihir Desai, da Harvard Business School. Alguns acadêmicos encontraram sinais de que as OFCs produziram efeitos positivos não planejados, fomentando crescimento e competitividade em economias "reais" vizinhas.

Deveria algo ser feito em relação aos OFCs? Países tentam desestimular investimentos em paraísos fiscais por meio de sua legislação tributária e investem na identificação de sonegadores do fisco. Mas essa é uma tarefa de Sísifo - quando uma brecha legal é fechada, advogados abrem outra; quando um OFC é convencido a cooperar no combate à evasão tributária ou ao crime financeiro, outro assume seu lugar.

Organismos internacionais deslancharam diversas iniciativas para tentar fazer com que os OFCs apertem sua supervisão, cooperem mais com governos estrangeiros para detectar sonegadores e, pelo menos na Europa, eliminar práticas tributárias "nocivas". Para os OFCs, essas iniciativas visam liqüidar suas atividades. Os países que estabelecem tais padrões "são como um oligopólio tentando impedir a entrada de concorrentes de menor porte. Eles são ao mesmo tempo jogadores e juízes num mesmo jogo. Como podem ser objetivos?", indaga Richard Hay, um advogado no Reino Unido represente de OFCs.

O que está claro é que a globalização alterou as regras do jogo. Produziu muitos benefícios para países ricos, mas também proporcionou mais oportunidades para evasão tributária, o que explica a preocupação destes em relação aos OFCs.

Estes, por seu turno, foram, de modo geral, bastante beneficiadas pela globalização. Há duas décadas, os OFCs eram predominantemente repositórios passivos do dinheiro de grandes companhias, pessoas ricas e bandidos. Algumas jurisdições ainda hoje admitem esse tipo de operação e deveriam ser interditadas. Mas as melhores delas - por exemplo, Jersey e Bermudas - tornaram-se centros financeiros sofisticados e bem gerenciados, com competência em alguns nichos, como seguros ou operações financeiras estruturadas.

(Tradução de Sergio Blum)