Título: Atritos entre Judiciário e Legislativo devem aumentar em 2007
Autor: Basile, Juliano e Jayme, Thiago Vitale
Fonte: Valor Econômico, 02/01/2007, Caderno Especial Posse, p. A8

As cúpulas dos poderes Legislativo e Judiciário estão definitivamente em lados opostos. Deputados, senadores e magistrados vêm se estranhando há dois anos devido a interferências de um nos trabalhos do outro e a expectativa é a de que o desgaste aumente ainda mais em 2007.

O episódio do reajuste dos parlamentares - aprovado pelas mesas diretoras da Câmara e do Senado e, logo depois, vetado pelo Supremo tribunal Federal (STF) - deve marcar o fim do tratamento diferenciado que a magistratura tinha no Congresso Nacional.

A partir deste ano, o Judiciário deverá enfrentar dificuldades cada vez maiores para aprovar projetos de interesse dos juízes no Congresso, com resultados negativos para vários tribunais superiores. A nova sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) está sob ameaça de não sair do papel por causa das críticas do Congresso aos projetos que implicam gastos milionários da Justiça. O projeto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para a criação de 400 novas varas federais no país também deverá sofrer restrições na Câmara, que pretende analisar seu custo na Comissão de Finanças. E o plano de cargos e salários do Tribunal Superior do Trabalho (TST) também deverá ser "engavetado" pela Câmara sob o argumento de que é preciso evitar novos custos no Judiciário.

Boa parte da dificuldade está nas novas formas de negociações entre as cúpulas de ambos os poderes. Diferente do antecessor, Nelson Jobim, a presidente do Supremo, Ellen Gracie, tem mostrado pouca habilidade no relacionamento com o Congresso. Jobim sempre fazia agrados aos políticos com decisões favoráveis ao governo ou à oposição. Beneficiou o primeiro ao restabelecer o leilão do petróleo, em 2004, que havia sido suspenso por liminar de outro ministro da corte, Carlos Ayres Britto. E conduziu a sessão do Supremo que determinou a instalação da CPI dos Bingos no Senado - uma vitória para a oposição.

Agora, a dificuldade no relacionamento entre os poderes atingiu seus piores momentos, em grande parte pela diferença entre os estilos de atuação da presidente do Supremo e do presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP).

Avessa a negociações políticas, a ministra Ellen Gracie procura notabilizar a sua gestão pela conduta administrativa à frente do Supremo. Ellen tem cobrado a aprovação de projetos de interesse da Justiça ao mesmo tempo em que o Supremo é chamado a decidir sobre supostos abusos do Congresso, como o aumento de 91% nos salários dos parlamentares, derrubado pelo tribunal no dia 19 de dezembro do ano passado.

Ainda em dezembro, quando o Congresso relutava em aprovar o último plano de cargos e salários do Judiciário - que teve um impacto de R$ 5,1 bilhões no orçamento da União -, Ellen telefonou para um influente deputado governista ligado ao Judiciário. Avisou que romperia publicamente com o parlamento caso o projeto não fosse aprovado. A partir dali, alguns líderes partidários e o próprio Aldo Rebelo começaram a tratar o Supremo de forma diferente.

Dias depois desse episódio, uma reunião de líderes contava com algumas reivindicações da ministra. Na pauta, um projeto ambicioso da Justiça que pretende transformar a defensoria pública quase em um poder. Algo semelhante ao conquistado pelo Ministério Público com a Constituição de 1988. Junto a esse pedido, havia a reivindicação da criação de cargos para o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo. Ambos os projetos implicavam aumento de verbas para a Justiça.

Os líderes partidários aprovaram a colocação do texto da defensoria pública para votação em plenário. Mas o líder da minoria, José Carlos Aleluia (PFL-BA), alardeou: "É muito dinheiro, algo exorbitante", reclamou. Nesse momento, com a memória da aprovação dos R$ 5,1 bilhões ao Judiciário, Aldo pediu a palavra. "Nunca interfiro no mérito das questões em reuniões de líderes", disse aos deputados. "Mas em todo o gasto que aprovamos para o Judiciário, precisamos identificar uma fonte. Ou um ponto para cortar. Não podemos conceder aumento e liberar dinheiro para construção de prédio ao mesmo tempo. Ou se quer uma coisa ou se quer outra", teria dito Aldo Rebelo às lideranças.

A influência de Aldo na reunião reservada freou o ímpeto dos líderes e o texto da defensoria ficou em compasso de espera: pode ser votado, mas não se sabe quando. Aleluia agradeceu o presidente da Câmara pela ajuda e o Judiciário viu um de seus projetos ser "engavetado".

Nessa mesma reunião, o deputado Eunício Oliveira (PMDB-CE) revelou aos colegas que o Tribunal de Contas da União (TCU) publicara edital para a contratação de um auditor com previsão de salário inicial em R$ 22 mil. O valor irritou os deputados. "Isso é rendimento para furar o teto. Ninguém começa a carreira com R$ 22 mil e se aposenta três décadas depois com R$ 24,5 mil", protestou um líder, na reunião.

Enquanto líderes do Congresso questionavam os gastos na Justiça, o Supremo, em sua última sessão do ano, fez uma espécie de ato de desagravo a Ellen Gracie. No discurso de encerramento do ano na corte, o ministro Sepúlveda Pertence, o decano no tribunal, lamentou os "atentados" sofridos por Ellen no fim de 2006. Pertence disse que a ministra estava sofrendo críticas apenas por tentar cumprir sua dupla função - a de presidente do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Ellen enviou projetos de lei pedindo o aumento de salários para os dois cargos. A ministra pediu, em junho do ano passado, a aprovação da elevação do teto dos magistrados dos atuais R$ 24,5 mil para R$ 25,7 mil. O reajuste levaria a um aumento em cascata para todo o Judiciário e, por isso, ainda não foi apreciado pelo Congresso. E, em novembro, Ellen reivindicou gratificações extras aos integrantes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) - o que elevaria o salário da própria ministra para mais de R$ 30 mil, acima, portanto, do teto do serviço público, que hoje está em R$ 24,5 mil.

As críticas a esses dois projetos de lei fizeram com que a ministra recuasse. Ela chegou a desmarcar um encontro com os líderes dos partidos na Câmara, onde certamente ouviria reclamações contra os aumentos de salários. "O ônus dessas aprovações sempre recai sobre o Congresso. Não podemos mais permitir isso", afirmou um líder de oposição.

Quando o Supremo brecou o reajuste dos parlamentares, alguns líderes ficaram furiosos e criticaram até a forma como Ellen Gracie colocou a questão em votação no plenário do Supremo. "O presidente Aldo foi avisado por sua assessoria de imprensa de que o julgamento tinha começado. Ele não foi avisado de forma institucional. Nem a Secretaria-Geral da Mesa recebeu qualquer aviso formal, como deveria ser. Foi deselegante", afirmou abertamente o 2º vice-presidente da Câmara, Ciro Nogueira (PP-PI).

Em reunião com Aldo depois da decisão do Supremo, líderes e integrantes da mesa reclamaram intensamente do Judiciário. "Precisamos de um freio no Judiciário. Vamos congelar o salário. Vamos passar um pente fino no Orçamento e ver o que podemos fazer", reivindicou o líder do PFL, Rodrigo Maia (RJ).

O orçamento foi aprovado sem o pente fino, mas já se sabe que os projetos do Judiciário no Congresso deverão sofrer uma "operação padrão". Muitos deverão ser "engavetados", em especial os que prevêem aumentos de gastos em tribunais superiores, caso do TSE, TST, STJ e do próprio Supremo. E os parlamentares estão esperando também sofrer retaliações.

Em meio à crise dos salários de deputados, Aldo Rebelo divulgou uma lista com os super-salários da Justiça. São 19 carreiras do Judiciário com rendimentos mensais acima dos R$ 21 mil. Desde procuradores da República, passando por procuradores regionais do Trabalho e subprocuradores-gerais da Justiça Militar, chegando aos R$ 24,5 mil dos ministros do Supremo.

A crise entre o Congresso e o Supremo teve início em 2005, quando a corte começou a conceder liminares para depoentes em CPIs. As liminares permitiram a vários dos investigados não responder a questões dos parlamentares. Os ministros do Supremo tornaram sigilosas boa parte das investigações em torno do escândalo do mensalão. O tribunal foi acusado no Congresso de interferir indevidamente na atividade parlamentar.

A situação piorou com o julgamento do então deputado e ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu. Os ministros do Supremo concederam algumas liminares a Dirceu contestando falhas no processo contra ele na Câmara. Por causa das liminares dadas a Dirceu, a oposição interrompeu a votação do orçamento no Senado. Na Câmara, os líderes da oposição identificaram excessivo "governismo" no Supremo e iniciaram um movimento para rediscutir a forma como são indicados os ministros da corte. O movimento foi tão forte que pode ter influenciado as últimas escolhas do presidente Lula, que indicou nomes considerados técnicos para o Supremo.

O presidente chegou a cogitar a possibilidade de indicar políticos para o Supremo, como o ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, e o deputado Sigmaringa Seixas (PT-DF). Mas acabou concordando em indicar juristas para o tribunal e as duas últimas vagas ficaram para Ricardo Lewandowski, então desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), e Carmen Lúcia Antunes Rocha, que era procuradora em Minas Gerais antes de chegar à corte. Ambos são professores universitários e não compõem o perfil de indicações políticas para o Supremo.

Agora, a expectativa é de que, com o relacionamento conturbado entre o Supremo e o Congresso, a pressão seja ainda maior em torno das próximas indicações de Lula. O ministro Sepúlveda Pertence é o próximo da lista dos que completam 70 anos e, com isso, são obrigados a abandonar a corte. Pertence chega à idade da aposentadoria compulsória em novembro, mas deve antecipar sua saída. Ele tem dito a interlocutores que deixa o tribunal até abril justamente para não ser "expulso" por força da idade. É possível que Pertence se retire antes de abril do Supremo, caso se confirmem as especulações em torno de sua indicação para ministro da Justiça. Além de Pertence, o presidente Lula deverá nomear um substituto para o ministro Eros Grau, que completa 70 anos em 2010.