Título: Causas da queda da desigualdade
Autor: Neri, Marcelo Côrtes
Fonte: Valor Econômico, 02/01/2007, Opinião, p. A19

O Brasil é ainda hoje um dos países com a maior desigualdade de renda do mundo. Após sua íngreme ascensão nos anos 1960, a desigualdade brasileira permaneceu alta e estável entre 1970 e 2000. Contudo, a partir de 2001, entramos em um declínio, que trouxe a desigualdade brasileira para os níveis mais baixos dos últimos 30 anos. Os dados da PNAD evidenciam os principais ganhadores e perdedores da recente dança distributiva brasileira. A parcela dos 50% mais pobres sobe de 12,5% para 14,1% entre 2001 e 2005. Já a fatia dos 10% mais ricos, essa cai de 47,2% para 45,1%. O nosso tema são os determinantes da desigualdade brasileira. Vale frisar que o objetivo final de políticas públicas não seria a redução da desigualdade em si, mas a melhoria do nível de bem-estar social que depende dela e do crescimento. Qual seria o papel de mudanças nos ambientes externo e interno na evolução recente da desigualdade? Mais especificamente, que políticas públicas (como mudanças de regime macroeconômico: metas inflacionárias, responsabilidade fiscal e cambio flutuante) e alterações na política social (como o lançamento do Programa Bolsa Família e reajustes do salário mínimo) explicam as mudanças observadas? Quais são os canais específicos de atuação dessas políticas? Essas são algumas das questões que gostaríamos de ver respondidas, para que as causas (e as conseqüências) da redução recente da desigualdade possam ser avaliadas. Oferecemos mais um mosaico de questões do que respostas precisas para cada um desses elementos.

Um primeiro efeito de natureza distributiva refere-se àquele produzido pela valorização da taxa de câmbio, que gera uma queda relativa na inflação dos mais pobres. Nanak Kakwani e Hyun Son avaliam esse efeito e obtêm, para o Brasil, no período de 2003 a 2006, reduções adicionais de pobreza de 4,33%, isto é, em vez de ter caído 19,3% entre 2003 e 2005, a miséria terá caído 23,63% quando incorporamos a operação do efeito inflação pró-pobre. Ou seja, o fato de a inflação dos pobres ter sido menor que a do conjunto da sociedade constitui um efeito puro de redução de desigualdade. A magnitude do efeito inflação pró-pobre é substantiva.

Na frente social, o salário mínimo cresceu 94% em termos reais no início de 1995 até 2006, incluindo o aumento de quase 24% em 2005 e 2006. O salário mínimo é também o numerário de várias políticas de transferência de renda, indexando benefícios e critérios de elegibilidade, particularmente na Previdência Social. Em 1995, as despesas com programas sociais já chegavam a 50% do gasto social brasileiro, e a 11% do PIB. Em 1998, houve mudança nos programas de transferência de renda tradicionalmente associados a reajustes do mínimo, assumindo progressivos ajustes dos benefícios, o que, porém, não foi especialmente notado, já que não exigiu nenhuma reforma ou mudança constitucional. A partir de 2000, com a criação do Fundo de Erradicação da Pobreza, houve uma gradual adoção dos programas, como iniciativa do governo central, voltada para os municípios que apresentavam os menores níveis de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). A expansão de programas focalizados de transferências de renda condicionada, como o Bolsa Escola, e, agora, o Bolsa Família, ajudou a combinar componentes compensatórios e estruturais.

-------------------------------------------------------------------------------- É preciso desmontar o antigo regime de políticas sociais, pouco focalizado, e enfatizar as melhoras no novo regime, representado pelo Bolsa Família --------------------------------------------------------------------------------

A participação de diferentes fontes de renda sofre algumas mudanças. Mesmo com aumentos reais per capita de 9,02%, a remuneração proveniente do trabalho perde um pouco de participação no total. Em contrapartida, o efeito Bolsa Família fica evidente nos ganhos de renda do período, já que as rendas provenientes de bolsas passam a representar, em 2005, 1,77% da renda per capita total dos brasileiros (que, em 2001, era 0,95%). Apresentam variação real de 92,14%, dos quais 81,24% nos últimos três anos. Por último, a Previdência mantém os 19% de participação na renda total, com acréscimos de 10% da renda, no período.

Para captar a contribuição de diferentes fontes de renda, não basta medir suas respectivas taxas de crescimento. Temos de levar em conta também as suas ponderações na renda total e na renda dos pobres. A elasticidade da contribuição de uma transferência pública específica para o crescimento do bem-estar social com respeito ao seu custo fiscal (contribuição para o crescimento da renda total) é útil para orientar as políticas direcionadas aos grupos mais pobres da sociedade brasileira. Os resultados indicam que entre 1995 e 2004 cada ponto percentual na parcela de gastos públicos na renda desse item trouxe uma melhora no crescimento das outras rendas dos mais pobres é de 19,8 vezes maior que o da seguridade social. Essa razão cai no período final dada a maior focalização dos benefícios previdenciários pós-1998, mas permanece no período em questão maior ainda de 4 a 5 vezes.

Quanto aos dilemas entre eqüidade e crescimento (eficiência), é preciso ter em mente que adoção e expansão de um novo regime de políticas de renda - sem acabar com o antigo regime - baseado na expansão das novas metas dos programas de transferência de renda financiados pelo governo federal leva a um aumento das despesas públicas que, por sua vez e por força da Lei de Responsabilidade Fiscal, leva ao incremento da carga tributária e da taxa de juros, as quais cresceram 10 pontos percentuais do PIB a partir de 1995, alcançando cerca de 38% no final de 2005, e contribuíram para o aumento da dívida pública brasileira, a mais da metade do PIB. Juros e carga tributária altos explicam o fraco desempenho econômico do Brasil. Reduzir a desigualdade com base em políticas pouco focalizadas trava o crescimento da economia e restringe a possibilidade de continuidade da redução da desigualdade observada.

Da mesma forma que a década anterior foi a de estabilização da inflação, a década atual é - pelo menos até agora - a de redução da desigualdade de renda. Para que alcancemos reduções sustentáveis e continuadas da desigualdade, com melhoras no bem-estar social, é preciso desmontar o antigo regime de políticas sociais relativamente pouco focado e, aqui, representado pelo salário mínimo, e enfatizar melhoras no novo regime de políticas sociais, representado, aqui, pelo Bolsa Família.

Marcelo Côrtes Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais do IBRE/FGV e professor da EPGE/FGV, é autor de "Retratos da Deficiência", "Cobertura Previdenciária: Diagnóstico e Propostas" e "Ensaios sociais".

mcneri@fgv.br