Título: Decisões do STF não detêm guerra fiscal nos Estados
Autor: Watanabe, Marta
Fonte: Valor Econômico, 10/01/2007, Brasil, p. A4

Em abril de 2006 o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou uma lei paraense que concedia benefícios fiscais de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). A lei foi considerada inconstitucional, porque os incentivos foram dados sem autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), órgão que reúne secretários de Fazenda de todos os Estados.

Três meses depois, em julho, o Pará já estava com novas leis aprovadas que restabeleceram incentivos fiscais de ICMS que, à semelhança dos dispositivos anteriores derrubados pelo STF, continham benefícios não analisados pelo Confaz. Em agosto, as novas leis foram questionadas e o Supremo concedeu liminar suspendendo os novos benefícios. O governo paraense, então, elaborou novos projetos de lei e os enviou em regime de urgência à Assembléia Legislativa. As leis foram publicadas dia 18 de dezembro e até agora os novos incentivos de ICMS não foram alvo de novo questionamento no Supremo. Mesmo com a saída do PSDB e entrada do PT no comendo do governo paraense desde 1º de janeiro, a política de incentivos deve ser mantida até que seja aprovada a reforma tributária em âmbito federal, informa o novo secretário da Fazenda do Pará, José Barreto Raimundo Trindade.

Para os tributaristas, o Pará e suas reiteradas tentativas de restabelecer incentivos fiscais derrubados pelo STF revelam que, no quadro atual, nem a legislação e nem o Judiciário são capazes de conter totalmente as práticas da guerra fiscal. Mesmo quando a legislação é aplicada em julgamentos da mais alta corte do país.

"O caso do Pará não é o primeiro em que o Estado praticamente reedita incentivos considerados inconstitucionais pela Justiça", diz o advogado Júlio de Oliveira, do Machado Associados. Um levantamento do escritório mostra ainda outra agravante. Apesar de as ações judiciais que discutem guerra fiscal serem analisadas somente pelo STF, sem precisar passar por todas as instâncias inferiores, nem sempre a as decisões são rápidas.

Dos 28 processos já ajuizados no Supremo que discutem guerra fiscal de ICMS apenas 13 já tiveram julgamento de mérito. Do restante, dois não chegaram a ser julgados por questões formais. Os outros 15 processos aguardam ainda uma análise definitiva dos ministros do STF ou simplesmente "caducaram". Ou seja, o incentivo fiscal questionado não existia mais ou já havia sido modificado quando entrou na pauta de julgamentos do Supremo. "Essa é uma prova de que muitas vezes o Poder Executivo é mais ágil do que o Judiciário, mudando a legislação assim que o dispositivo é questionado", explica Oliveira. Dos processos que não caducaram e que ainda aguardam um julgamento de mérito pelo Supremo, seis foram ajuizados até 2000.

O levantamento levou em consideração as ações diretas de inconstitucionalidade que já tiveram alguma decisão publicada no Diário da Justiça, ajuizadas pela Procuradoria Geral da República ou pelos Estados e que se basearam principalmente no artigo da Constituição Federal que proíbe os governadores de conceder incentivos de ICMS sem autorização do Confaz. Não foram contabilizadas as ações já extintas.

O levantamento das ações também revela que não são poucos os Estados que já tiveram dispositivos questionados pela Procuradoria Geral da República ou por outro governador. Além do Distrito Federal, 14 dos 26 Estados já foram alvo de uma contestação desse tipo (ver quadro). "As ações que estão no STF revelam que a prática de oferecer incentivos não autorizados pelo Confaz é relativamente generalizada. Até mesmo Estados que freqüentemente se dizem alvos da guerra, como São Paulo, por exemplo, possuem dispositivos questionados", diz o advogado Flávio de Sá Munhoz, do Munhoz Advogados.

Uma das mais recentes ações contra São Paulo foi movida pelo Paraná e diz respeito a um dos incentivos concedidos recentemente, durante a gestão do ex-governador Geraldo Alckmin, em 2005: a redução do imposto para o trigo, sua farinha e para as massas alimentícias. Esse processo está pendente de julgamento.

Também envolve o governo paulista uma das decisões mais esperadas do STF no campo da guerra fiscal. Trata-se de uma ADI na qual o Estado de Goiás pede que seja invalidado o Comunicado da Coordenadoria de Administração Tributária de São Paulo nº 36/2004. Essa medida paulista causou polêmica desde que foi editada, porque não aceita os créditos de incentivos fiscais declarados pelas empresas caso as mercadorias tenham sido alvo de incentivo fiscal oferecido em outro Estado sem a aprovação no Confaz.

A publicação do comunicado sempre foi defendida pelo Estado de São Paulo como uma resposta à guerra fiscal promovida pelos demais governos. Para Munhoz, uma recente decisão do STF, porém, serve como precedente negativo para o Estado de São Paulo. Numa ação direta do Distrito Federal contra o Mato Grosso, os ministros declaram a inconstitucionalidade de uma norma na qual o governo mato-grossense restringia o crédito de ICMS nas mercadorias provenientes de alguns locais. Entre eles, o Distrito Federal. O Supremo decidiu que a limitação ofende a não-cumulatividade, princípio básico do ICMS que garante o uso do crédito do imposto. Os ministros também entenderam que a norma tentou estabelecer novas alíquotas interestaduais, papel que somente cabe ao Senado.

Quando editou a medida de restrição dos créditos, o Distrito Federal chegou a bloquear a entrada de caminhões procedentes de território paulista. Segmentos como o do comércio atacadista atacaram frontalmente a medida. A declaração de inconstitucionalidade no caso do dispositivo paulista, porém, é ainda uma expectativa enquanto o processo não entra na pauta de julgamentos.

Para Oliveira, porém, as decisões do Judiciário sobre o assunto correm risco de ter efeito limitado. Ele explica que o comunicado em que São Paulo rejeita créditos de incentivos dados por outros Estados é meramente exemplificativo. "Existem outros créditos não relacionados expressamente na medida e que têm sido glosados por São Paulo, na prática", explica ele.

À semelhança de São Paulo, diz o consultor Douglas Rogério Campanini, da ASPR Auditoria e Consultoria, vários outros Estados rejeitam o crédito de incentivos concedidos em outros locais. "Embora adotem a prática, são poucos os Estados que explicitaram essa prática em normas ou comunicados formais. Isso, na prática, acaba limitando os questionamentos judiciais."

De qualquer forma, a demora e as idas e vindas de normas legais acabam afetando as empresas que aderem a incentivos fiscais oferecidos e regulamentados pelos Estados. Na nova leva de incentivos recém-editados no Pará, por exemplo, 17 empresas já se habilitaram. Entre elas, a Tramontina Belém S.A. O ramo paraense do grupo Tramontina produz móveis, cabos de ferramenta, cabos de cutelaria e utensílios numa unidade com 500 empregados e faturamento de R$ 5 milhões mensais.

O diretor administrativo da empresa, Antônio Pagliari, diz que a companhia se beneficia principalmente do diferimento de ICMS na compra de insumos, predominantemente a madeira, dentro do Estado. "Como 50% da nossa produção é exportada, temos muitas operações que geram créditos de ICMS. O governo paraense não nos devolve o crédito. A forma de não acumularmos o imposto é usar o diferimento."

Embora a decisão do STF no caso do Pará tenha determinado que as empresas recolham todo o imposto que deixou de ser pago no passado por conta do incentivo fiscal, Pagliari conta que a Tramontina nem chegou a fazer as contas do montante. A companhia aproveita os incentivos desde 1997 e diz que a decisão de se instalar no Pará se deu em razão da proximidade da matéria-prima. "Essas discussões no STF deixam as empresas em grande insegurança jurídica, já que os benefícios fazem diferença na composição de custos de produção."

Quando encaminhou as leis que renovaram os incentivos fiscais derrubados pelo Supremo Tribunal Federal, o governo paraense defendeu a manutenção dos benefícios, porque os incentivos não representariam mera renúncia fiscal, mas impõem obrigações às empresas beneficiadas. Pelos cálculos do governo, a política de incentivos do Estado possibilitou, nos últimos seis anos, R$ 6, 67 bilhões em investimentos privados e a geração de 30,3 mil empregos diretos.

Com atividade eminentemente extrativa e voltada para exportação, o governo paraense queixa-se da perda de arrecadação do ICMS desde que as vendas ao exterior foram desoneradas do imposto. Desde a desoneração, em 1996, até agosto de 2006, o Pará teria acumulado R$ 10 bilhões em perdas decorrentes do ICMS que deixou de ser recolhido nas exportações. Na exposição de motivos da leis que renovaram os incentivos, o governo paraense também alegou que todos os Estados continuam concedendo incentivos fiscais por meio de leis, decretos ou atos sem autorização do Confaz.

O secretário de Fazenda do Pará alega que os incentivos do Pará têm como base dispositivos diferentes dos julgados inconstitucionais pelo Supremo. Ele garante que a gestão da nova governadora, Ana Júlia Carepa (PT), deverá manter, de forma geral, a política de incentivos do governo anterior. Segundo ele, uma mudança só será possível quando houver reforma tributária aliada a uma mudança no mecanismo de ressarcimento dos Estados que foram penalizados com a perda de arrecadação de ICMS nas exportações. Ele diz que o governo do Pará deverá propor a inclusão do item na reforma.