Título: Reformas na Venezuela devem redefinir conceito de propriedade
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 10/01/2007, Internacional, p. A10

As reformas socialistas preparadas pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, para o seu novo mandato, que começa oficialmente hoje, não param nas estatizações anunciadas anteontem. Vão mexer também nos conceitos de propriedade. É o que afirma o deputado Carlos Escarrá, da ala radical do Movimento Quinta República, o partido de Chávez, e um dos parlamentares próximos do presidente reeleito.

Segundo o deputado, a revisão constitucional que o governo pretende deflagrar ainda este ano ampliará a abrangência das propriedades "coletivas" e "sociais". Hoje, estão nessas duas condições só os territórios indígenas (propriedade coletiva) e terras destinadas a garantir segurança agro-alimentar (propriedade social), argumento hoje usado para a reforma agrária.

"Vamos definir melhor esses conceitos e ampliar alguns deles", disse Escarrá ao Valor, por telefone, especificando que cooperativas e companhias em situação falimentar podem mudar de condição. Terras improdutivas também devem ser reclassificadas para impulsionar o processo de reforma agrária, acrescentou o parlamentar. "Vamos fazer um socialismo com características próprias, sem excluir a propriedade individual e privada, mas vinculando-a aos interesses do Estado", disse Escarrá.

O governo já tem uma lista de 800 empresas com problemas societários e em situação falimentar que podem sofrer intervenção estatal. Entre as possibilidades previstas está a transferência de controle ao Estado ou uma gestão direta dos trabalhadores, em regime de propriedade coletiva ou social. A intenção do governo é abrir espaço na Constituição para esse tipo de intervenção. "Depois, há que se ver cada caso em concreto."

Chávez enfrenta a pressão de sindicatos e associações influentes, como a União Nacional de Trabalhadores (UNT), que quer interferência estatal em empresas nacionais e estrangeiras com problemas na Venezuela. Na mira da UNT estão as subsidiárias das multinacionais Coca-Cola, Parmalat e Nestlé. O Ministério da Indústria Leve e do Comércio já estaria analisando o caso dessas empresas. "A Venezuela tem um parque industrial cujo aproveitamento está em torno de 30%. Ou seja, 70% da capacidade da indústria não está sendo usada. O Estado pode tomar um conjunto de medidas para resolver isso", disse o deputado Escarrá.

Chávez já havia anunciado a intenção de aproveitar uma revisão constitucional para estabelecer a possibilidade de reeleições indefinidas. As reformas da Constituição seguem, porém, um trâmite extenso: o presidente nomeará uma comissão que proporá as mudanças; elas serão votadas pelo congresso unicameral, sem a presença da oposição, que boicotou as eleições legislativas do ano passado; por último, todas as alterações serão submetidas a referendo popular.

Outra medida em gestação no Executivo é a exigência de que todos os cidadãos venezuelanos com idade entre 18 e 60 anos cumpram "serviços sociais", com participação nas "missões" de Chávez - os programas de assistência à população pobre. Na última semana de dezembro, a Assembléia Nacional (Congresso venezuelano) aprovou a Lei do Serviço Social, que depende de um aval do presidente da República para ser implementada.

Pela nova legislação, cada cidadão deverá dedicar 120 horas anuais a serviços sociais. Estariam excluídos da obrigação os venezuelanos em cumprimento do serviço militar, estudantes de ensino superior e pessoas com problemas médicos. Aqueles que se recusarem a prestar os serviços, segundo a lei, deverão assistir a "jornadas pedagógicas", promovidas pelo governo, para "criar uma consciência solidária e participativa".

Na composição do governo que começa hoje, Chávez trouxe auxiliares de confiança para o Palácio de Miraflores (sede do Executivo) e afastou partidários considerados da ala moderada do "socialismo do século XXI". Foi o caso do vice-presidente José Vicente Rangel (na Venezuela o cargo não é eletivo), que desde meados da década de 1990 tem sido o principal fiador civil de Chávez. Advogado e jornalista, com quase 80 anos de idade, Rangel era da linha que defendia um socialismo "light". Ele foi afastado na semana passada. Teve o mesmo fim Nelson Merentes, o ministro da Economia, que também integrava essa ala. Merentes ganhou um cargo na diretoria do Banco Central, mas perdeu força.

Para o Ministério da Educação, Chávez nomeou seu irmão, Adán. Filho de uma família camponesa no Estado de Barinas, no oeste da Venezuela, Chávez trouxe para o governo boa parte dos seus colegas próximos de juventude, que militaram com ele no Exército. A maioria desses colegas presenciou as cenas de quando o atual presidente, ainda no anonimato, tramava um golpe de Estado em reuniões que sempre tinham uma cadeira vazia: a cadeira que Chávez, desde os anos 80, dedicava à presença do libertador Simón Bolívar.