Título: A metamorfose da ideologia do PT
Autor: Roma, Celso
Fonte: Valor Econômico, 10/01/2007, Opinião, p. A12

A imprensa destacou, no mês passado, a declaração do presidente Lula segundo a qual a maturidade o fez caminhar para o centro do espectro ideológico. O problema é que essa mudança não foi o resultado de um longo processo de aprendizado. O PT se transformou em outro ser às vésperas do pleito de 2002. Seus dirigentes perceberam, apenas naquele momento, a necessidade de moderar o seu discurso e mudar a cor da sua bandeira política. Tanto, que dois anos antes dessa inflexão, o partido ainda publicava documentos cujo conteúdo reincidia no erro do radicalismo que assustou o eleitorado do país nas décadas de 80 e 90.

Nos documentos publicados pela Comissão Executiva Nacional entre 1979 e 1981, período correspondente à fundação do PT, os petistas vociferavam que seu objetivo era construir uma sociedade igualitária, sem exploradores e sem explorados, por meio de uma revolução que deixariam em ruínas as instituições burguesas. A tese intitulada Santo André/Lins expressa de maneira inequívoca esse caráter revolucionário. O partido propunha a estatização de grandes empresas e bancos; a nacionalização das empresas estrangeiras; o controle popular dos fundos públicos; a eliminação das horas extras; a redução da jornada de trabalho; a aposentadoria integral; a extensão de todos direitos dos trabalhadores urbanos aos rurais; o pagamento em dobro das férias; a estabilidade no emprego a partir da admissão; entre outras medidas.

Com mais de dez anos de vida, o PT manteve-se firme na defesa de uma agenda de esquerda. A perda da eleição presidencial de 1989 não abalou suas convicções. De acordo com as resoluções do I Congresso Nacional, realizado em 1991, o partido pretendia estimular o conflito entre capital e trabalho, controlar amplos setores da economia e reformar o sistema político do país. Contrariando seus detratores, que denunciavam a falta de apresentação de um projeto para o Brasil, os petistas propunham a estatização de empresas privadas; uma reforma tributária, com forte taxação das grandes fortunas; a centralização do câmbio; a suspensão do pagamento da dívida externa; a retomada dos investimentos públicos; mudanças institucionais, como a extinção do Senado. O PT consolidou nesse período a imagem de partido comprometido com a ética na política, denunciando os escândalos de corrupção no governo Collor amplamente divulgadas pela imprensa, que atingiam seus ministros, assessores diretos e até um membro da família. O ex-presidente Collor mereceu uma moção de repúdio, sobretudo pela insistência numa política econômica responsável pelo baixo crescimento e pela recusa em reajustar em 147% os benefícios de aposentados e pensionistas.

Ao completar vinte anos, o PT perseverou em seus propósitos, mesmo após ser derrotado nas urnas em 1994 e 1998 pela coligação PSDB-PFL. As resoluções do II Congresso Nacional, realizado de 24 a 28 de novembro de 1999, sinalizavam a necessidade de mudar radicalmente a política econômica, provocando um enfrentamento entre os trabalhadores e o capital financeiro nacional e internacional. Não pairavam dúvidas sobre os rumos da mudança que o país tomaria depois da posse de Lula como presidente da República. Os trabalhadores controlariam a gestão e a produção das empresas públicas e privadas. A Previdência Social seria organizada segundo os princípios da universalidade, concedendo benefícios iguais para todos os trabalhadores dos setores público e privado. A política de privatização de empresas estatais, realizada na gestão Fernando Henrique Cardoso, seria revista por meio de auditoria. Para transformar essas propostas em políticas concretas, o partido contaria com uma aliança programática com o PDT, o PSB, o PCdoB e setores do PPS e PMDB. O discurso do PT, até então, antecipava para a eleição de 2002 outro embate entre a sua agenda estatizante e intervencionista e a agenda liberal dos tucanos e pefelistas.

-------------------------------------------------------------------------------- O PT manteve-se firme na defesa do programa de esquerda mesmo com a perda da eleição presidencial de 1989 --------------------------------------------------------------------------------

O fato é que o radicalismo do PT sucumbiu momentos antes do pleito presidencial de 2002. Para vencer as eleições, os líderes do partido abandonaram num prazo de dois anos uma agenda que defenderam ao longo de vinte anos. Essa guinada para o centro está atestada na "Carta ao Povo Brasileiro", assinada por Lula. O conteúdo desse documento endossa, inclusive, parte das medidas econômicas que foram tomadas pelo ex-presidente Fernando Henrique em seus dois mandatos consecutivos e que foram rechaçadas pelos petistas nas votações do Congresso Nacional. O partido, desde então, passou a encampar temas alheios à tradição da esquerda brasileira.

O PT levou um choque de realidade e, ao cabo de muito esforço, aprendeu as lições de liberalismo dadas por seus rivais, o PSDB e o PFL. Petistas consideram agora a estabilidade monetária, o controle das contas públicas e o fim da inflação como patrimônios de toda população brasileira. O tema da suspensão do pagamento da dívida foi substituído pela criação de superávit primário o quanto for necessário para impedir o aumento da dívida interna e cumprir integralmente os contratos do governo firmados com as agências internacionais, como o FMI. O ímpeto por uma ruptura do modelo de governo e sociedade existente no país cedeu ao reconhecimento de que é necessária uma transição criteriosa e negociada. A lista de direitos dos trabalhadores foi esquecida, porque um governo não pode fazer milagres nem atender toda a reivindicação da sociedade. Os petistas amenizaram sua visão hegemônica de poder, aceitando o apoio de políticos que, há poucos anos, eram seus rivais na arena eleitoral e parlamentar. O discurso petista mudou, dessa maneira, em forma e conteúdo.

Enfim, partidos podem e devem revisar o seu programa de governo quando a realidade vence as ilusões. Os petistas amadureceram ao abandonar dogmas que no contexto brasileiro se revelaram contraproducentes e ao cumprir, no primeiro mandato do presidente Lula, as promessas feitas em 2002. Entretanto, essa mudança súbita de comportamento do PT ainda carece de justificativa para uma parcela dos seus filiados e, em grande medida, atesta que seus adversários estavam no caminho correto.

Celso Roma é doutor em ciência política pela USP e especialista em partidos e eleições.