Título: O câmbio e os preços de exportação
Autor: Fligenspan, Flávio B.
Fonte: Valor Econômico, 30/01/2007, Opinião, p. A16

O processo de apreciação cambial que se verificou durante o primeiro governo Lula tem suscitado um vasto e elucidativo debate. Várias são as vertentes deste debate, desde a questão da competitividade das exportações até a utilidade da taxa de câmbio para conter a inflação, passando por um possível processo de desindustrialização. Um aspecto que tem chamado atenção é o crescimento das exportações e dos saldos comerciais, mesmo diante do que seria um câmbio desfavorável. Com efeito, as exportações brasileiras em 2006 devem bater novo recorde, aproximando-se de US$ 138 bilhões, o que vai gerar um saldo comercial expressivo de mais ou menos US$ 45 bilhões e superávit em transações correntes pelo quarto ano consecutivo. Seguindo uma tendência que vem desde a mudança do regime cambial de 1999, os resultados dos últimos anos geraram uma transformação significativa nos indicadores externos da economia brasileira.

Das várias questões que permanecem em aberto, vale a pena investigar um pouco mais a relação entre o câmbio apreciado e as exportações de manufaturados, até porque diferentes setores da indústria brasileira têm dado respostas bastante díspares ao processo de apreciação. Depois de um período de oscilações fortes da taxa de câmbio efetiva real, com pelo menos três episódios de estresse, em 1999, 2001 e 2002, este último na campanha eleitoral, impressiona a queda da variável. Desde outubro de 2002, o ponto mais alto (e atípico) do período de regime de câmbio flutuante, até outubro de 2006, ocorreu uma redução de 45,6% no índice da taxa de câmbio, usando-se o IPA como deflator. É claro que tomar outubro de 2002 como ponto de partida implica um viés, mas o que chama atenção é a amplitude e a continuidade da queda. Diante disso, pareceria improvável a obtenção de sucessivos recordes de exportação.

Ocorre que a partir do segundo semestre de 2003 verificou-se um não menos impressionante movimento de elevação dos preços dos produtos manufaturados exportados pelo Brasil. O gráfico ajuda a compreender o movimento das duas variáveis. Consideremos o período de abril de 2003 para cá. Escolhendo este ponto de partida, afastamos a turbulência eleitoral de 2002. O governo Lula já havia começado e "acalmado" o mercado com suas escolhas de pessoas e de políticas e o pico cambial de outubro de 2002 já se havia desfeito. O que se verifica? Induzidos pelo aquecimento do mercado internacional, os preços das nossas exportações de manufaturados disparam, mais do que compensando o movimento de queda do câmbio. Segundo dados da Funcex, no intervalo de três anos e meio, entre abril de 2003 e outubro de 2006, o câmbio efetivo real caiu 27% e os preços subiram 35% em média. As duas curvas que caminhavam mais ou menos juntas, apesar das oscilações do câmbio, se descolam e passam a mostrar trajetórias completamente distintas a partir do segundo semestre de 2003. Com isso, gera-se um caso especial da chamada "doença holandesa", em que ela ocorre mesmo num ambiente de elevação dos preços.

Porém, esta situação média abriga comportamentos diversos para os vários setores. Se a taxa de câmbio é a mesma para todos e se os preços em geral se elevaram, há que verificar que nem sempre a combinação entre os preços e os custos de produção evoluiu favoravelmente. Além disso, existem setores que, por questões estruturais, como evolução tecnológica e presença com marcas próprias no mercado internacional, ou conjunturais, como o grau de aquecimento do mercado internacional, conseguiram enfrentar melhor esse período de ajustes. Exemplos de quem obteve melhores resultados são os dos produtores de metalúrgicos não-ferrosos e de refino de petróleo e petroquímicos. De acordo com dados da Funcex, entre o segundo trimestre de 2003 e o terceiro de 2006, os preços de exportação destes setores cresceram, respectivamente, 106% e 90%. Enquanto isso o câmbio caiu 26%. O índice de rentabilidade da Funcex, que envolve toda estrutura de custos dos setores, cresceu 5% e 18%, respectivamente, para os mesmos dois setores.

-------------------------------------------------------------------------------- Relação entre o câmbio e preços de exportação tem muito a ver com o sucesso exportador recente da indústria brasileira --------------------------------------------------------------------------------

Na outra ponta há exemplos como os de calçados, couros e peles e madeira e mobiliário, para os quais os preços também subiram, mas bem menos, 33% e 42%, respectivamente. Considerando-se as variações dos demais custos de produção, o resultado final em termos de rentabilidade foi de reduções de 18% e 17%.

Mesmo tendo em conta a importância de uma série de outras variáveis relevantes, como capacidade de importação de matérias-primas, alavancagem financeira, mecanismos de redução tributária, duração do ciclo do produto e intensidade de mão-de-obra, a relação entre o câmbio e os preços de exportação tem muito a dizer sobre o sucesso exportador recente da indústria brasileira. É inequívoco que o governo Lula teve muita sorte nesses últimos anos, pois o cenário internacional propiciou resultados externos excelentes em simultâneo com um câmbio baixo para ajudar a segurar a inflação. Nem todos os setores tiveram a mesma sorte.

Flávio Benevett Fligenspan é professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

E-mail: fli@ufrgs.br