Título: Destrinchando o crescimento e a estagnação trabalhistas
Autor: Neri, Marcelo Côrtes
Fonte: Valor Econômico, 30/01/2007, Opinião, p. A17

O crescimento econômico impacta cada indivíduo de diferentes maneiras em distintos instantes do tempo. O padrão presente de crescimento da renda das pessoas é influenciado por elementos diversos, indo desde programas sociais, como Bolsa Família e Previdência Social, até a renda dos juros e os descontos do imposto de renda. O objetivo aqui é detalhar as influências de elementos privados trabalhistas que, ao fim e ao cabo, vão determinar quão sustentável será cada expansão. Decompomos a taxa de crescimento da renda per capita do trabalho em elementos associados ao desempenho do mercado de trabalho, tais como evolução da produtividade medida pelo salário-hora, da jornada de trabalho, da oferta de trabalho e de sua respectiva empregabilidade. À luz desta metodologia, captamos quanto dada mudança de bem-estar dos pobres observada decorre, por exemplo, de mudanças da média da jornada de trabalho, ou da distribuição do salário-hora na população. O resultado é uma espécie de metodologia Lego - o brinquedo de montar - que divide aditivamente o total das mudanças em peças de encaixe separadas. Conceitualmente, a diferença entre crescimento da renda média do crescimento pró-pobre de cada elemento decorre de um tipo de encaixe chamado equidade. Este exercício se revela não só útil para entender o passado, mas para construir cenários sociais consistentes de crescimento para o futuro.

Utilizamos as PNADs de 1995 até 2005, explorando ligações entre medidas de performance trabalhista concebidas em meu trabalho conjunto com Hyun Son, do IPC da ONU, e Nanak Kakwani, incomparável mestre indiano dos indicadores sociais. Os resultados revelam padrão pouco usual de quedas da renda média e da pobreza. A mistura de estagnação econômica com alívio de pobreza é evento único nas séries brasileiras. Este paradoxo ocorre no período 1995 a 2005, mas foi mais pronunciado no desempenho trabalhista do período de 2001 a 2005. Quando, seguindo a analogia culinária tradicional, o bolo trabalhista dos brasileiros pobres cresceu, apesar do crescimento ter dado "bolo" nos pobres dos trabalhadores brasileiros. Ou estagnação com equidade à brasileira.

-------------------------------------------------------------------------------- O bolo trabalhista de brasileiros pobres cresceu forte nos últimos cinco anos, apesar do crescimento ter dado "bolo" nesses pobres trabalhadores --------------------------------------------------------------------------------

Os ganhos de renda per capita advindos do mercado de trabalho tiveram um mal desempenho entre 1995 e 2005, caindo numa taxa de 1,13 pontos de porcentagem per capita por ano (ppa), isto é, já descontado o crescimento populacional. Apesar da reversão trabalhista do último biênio, o período de 2001 a 2005 foi ainda de crescimento negativo, quando a taxa de crescimento média na renda trabalho passou a ser -0,22 ppa. Entretanto, a taxa de crescimento pró-pobre passou a ser altamente positiva, com uma taxa anual de 3,41 ppa no segundo período. Assim, houve um ganho de 3,63 pontos percentuais anuais na taxa de crescimento, que é atribuída à queda na desigualdade. O efeito equidade trabalhista também opera no período 1995 a 2001, mas em menor escala. Isto indica que, a partir desta década, as condições do mercado de trabalho se tornaram bem melhores para os pobres. Os dados mostram que a renda trabalho beneficiou proporcionalmente os pobres mais do que os não-pobres, em particular no último período, de 2004, que é o melhor ano de crescimento trabalhista pró-pobre, e mesmo 2005, acompanhado de menor ganho distributivo.

É interessante investigar que fatores do mercado de trabalho - como emprego e produtividade, entre outros - explicam o padrão de crescimento trabalhista médio e o padrão pró-pobre neste período. Estes elementos são colocados juntos por uma nova metodologia de decomposição, que apresenta os resultados de forma aditiva na taxa de crescimento de diversos elementos. Por exemplo, a taxa de (de)crescimento da renda per capita média de -0,22 ppa ao ano no período 2001 a 2005 foi essencialmente determinada pela queda da produtividade das pessoas, medida através de salário-hora, de -0,88 pontos de porcentagem por ano (ppa), e em menor medida pela redução na jornada de trabalho, -0,77 ppa. A taxa de ocupação ficou neutra neste período. Outros elementos, como aumento da oferta de trabalho 1,4 ppa, amorteceram em parte a decadência trabalhista observada, perfazendo a soma destes fatores na queda da renda do trabalho média de -0,22 ppa.

Atendo-nos à análise da taxa de crescimento pró-pobre da renda do trabalho, esta se revela altamente positiva, de 3,41 ppa no período 2001 a 2005. O fator chave no segundo período é a produtividade medida pelo salário-hora, que contribui com 2,5 ppa do total do crescimento trabalhista pró-pobre. Um outro importante fator é a taxa de participação da força de trabalho, que contribui com 1,6 ppa para a taxa de crescimento pró-pobre. As horas de trabalho por pessoa empregada contribuíram negativamente em -0,93 ppa. A contribuição da ocupação é positiva mas modesta, 0,24 ppa.

A reversão 2004 e 2005, que está incluída no período de redução acelerada da desigualdade observado desde 2001, ocorre após mais de uma década de estagnação trabalhista generalizada, culminando nas crises de 1999 e de 2003. O mercado de trabalho brasileiro sinaliza no biênio 2004 e 2005 recuperação acelerada das perdas passadas. Em termos de redução de desigualdade, 2004 se revela o melhor ano da série. Ela é mais espetacular que a ocorrida em 1986, ano do Cruzado. De maneira mais interessante, a queda da desigualdade de 2004 dá seqüência a uma tendência de baixa da desigualdade iniciada em 2001 e é continuada em 2005, embora em menor magnitude. A renda média do trabalho cresce 3,28 ppa em 2004, mas a renda trabalhista dos pobres aumenta 16,24 ppa somente neste ano, o que pode ser rotulado de crescimento chinês. Na verdade, o adjetivo chinês está relacionado não só à magnitude do crescimento observada, mas à influência trabalhista então observada. Ou seja, 2004 é não só um crescimento forte do bolo com mais fermento nas classes mais pobres, mas com maior sustentabilidade, dada relativa independência frente à redistribuição de renda promovida pelo Estado brasileiro. 2005 também constitui um ano interessante, menos pelo efeito equidade, que contribui com 2,94 ppa, mas mais pelo crescimento da renda média per capita do trabalho, de 5,3 ppa, totalizando uma taxa de crescimento pró-pobre de 8,24 ppa, metade daquela observada em 2004, mas superior a de qualquer outro ano dos últimos dez anos.

Marcelo Côrtes Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais do IBRE/FGV e professor da EPGE/FGV, é autor de "Retratos da Deficiência", "Cobertura Previdenciária: Diagnóstico e Propostas" e "Ensaios sociais". E-mail: mcneri@fgv.br

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