Título: Uso do FGTS pode abrir disputa judicial
Autor: Goulart, Josette
Fonte: Valor Econômico, 24/01/2007, Brasil, p. A4

O uso de R$ 5 bilhões do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) em investimentos de infra-estrutura, previstos na MP 349, que faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), não vai afetar o patrimônio dos trabalhadores que está assegurado por lei. Vai mesmo é abrir uma discussão sobre o direito das empresas de reaverem o dinheiro que vêm desembolsando, desde 2002, para cobrir o rombo causado no FGTS durante o governo Collor. Os recursos extras aportados no fundo geraram ao longo dos últimos quatro anos superávit de R$ 21 bilhões e atiçaram a cobiça do governo que, carente de recursos, viu nesse patrimônio uma saída para seus planos de investimentos.

A MP traz duas previsões legais. Uma delas dá a opção aos trabalhadores de aplicar os recursos que possuem no FGTS em um fundo de investimento com remuneração diferenciada da que se tem hoje no próprio FGTS (TR mais 3% ao ano). Mas o investidor terá que correr os riscos de um fundo do mercado financeiro, ou seja, até de perder patrimônio. É a mesma possibilidade aberta com os Fundos Mútuos de Privatização da Vale e da Petrobras criados no governo Fernando Henrique e que foram apoiados pela Força Sindical na época. A outra previsão legal trazida pela MP e, esta sim polêmica, é a autorização de se aportar R$ 5 bilhões do "patrimônio líquido" do FGTS no Fundo de Investimento previsto na MP.

O representante da Confederação Nacional do Comércio (CNC) no Conselho Curador do FGTS, Pedro Cortes, explica que este "patrimônio líquido" é o superávit do fundo. Significa que, se todos os trabalhadores recebessem os recursos a que têm direito (os 8% pagos pelos empregadores mensalmente sobre os salários, acrescidos da TR anual e dos 3% também anuais), sobrariam os R$ 21 bilhões. É uma espécie de colchão de liquidez do fundo. Na MP também está previsto que com a aprovação do Conselho Curador poderão ser aplicados no fundo de infra-estrutura até 80% do patrimônio líquido. Cortes diz que o governo considera que os 20% restantes seriam o colchão de liquidez suficiente para cobrir eventuais rombos.

O superávit do FGTS começou a ser gerado a partir do acordo feito com os trabalhadores para que recebessem os expurgos inflacionários gerados pelos planos Collor I, II e Verão. A conta acabou sendo apresentada às empresas. A partir da edição da lei complementar 110, de 2001, os empregadores passaram a contribuir mensalmente para o FGTS em 8,5% e não mais com 8% sobre o salário. A multa rescisória a ser paga pelas empresas passou de 40% para 50%.

Essa geração extra no FGTS foi usada para honrar o pagamento do diferencial inflacionário gerado no governo Collor aos trabalhadores. Mas os recursos foram aplicados ao longo desses anos em obrigações do Tesouro Nacional (OTNs), segundo Cortes, e geraram ainda mais superávit.

O "patrimônio líquido" do FGTS continua tendo sua fonte de recursos. Apesar de o adicional de 0,5 ponto percentual na contribuição mensal do FGTS ter expirado no ano passado, os dez pontos a mais sobre a multa ainda têm que se pagos. A advogada Ana Cláudia Utumi, do escritório Tozzini, Freire, recomenda que as empresas entrem com ação na Justiça para não ter que pagar a diferença. Isso porque se não existe mais a destinação, o pagamento dos acordos, não há mais por que pagar o tributo. "Mas em outros casos, como a Cide, os tribunais de segunda instância têm entendido que o fim da destinação não cessa a obrigação de pagar o tributo", diz Ana Cláudia. No Supremo Tribunal Federal (STF), a lei complementar 110 é questionada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) desde 2002. A liminar obtida, entretanto, não eliminou o pagamento dos 10% a mais na multa do FGTS e até agora não houve julgamento final.

A dúvida levantada agora é se esses recursos extras, o patrimônio líquido, pertencem aos trabalhadores, que deveriam ter remuneração extra; aos empregadores, que que desembolsaram o dinheiro; ou ao próprio fundo, que, portanto, poderia aplicá-lo em obras de infra-estrutura, por exemplo. Cortes defende no Conselho Curador que o patrimônio seja dividido entre os trabalhadores. Ele teme que o uso sistemático do FGTS pelo governo possa gerar esqueletos como o do INSS. A Previdência financiou obras como Transamazônica e ponte Rio-Niterói.

O advogado Nelson Mannrich, do escritório Felsberg & Associados, diz que os recursos do FGTS que vão além do que está previsto na lei não são dos trabalhadores. Pertencem ao próprio fundo. Pela lei do FGTS, o fundo deve ter os recursos aplicados em habitação, saneamento e infra-estrutura urbana. Para Eduardo Kiss, do escritório Demarest e Almeida, a MP não pode ser considerada ilegal, pois só aumenta o escopo do investimento. A MP só permite que o fundo de infra-estrutura deixe de ter comprometimento com a rentabilidade média, mas fica submetido às regras de aplicação estabelecidas na lei do FGTS, que define medidas de segurança de investimento para não perder patrimônio.