Título: Inflação desafia 'heterodoxia' de Argentina e Venezuela
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 13/02/2007, Opinião, p. A16

Dois países latino-americanos estão no topo do hoje exíguo ranking mundial da inflação alta - Venezuela e Argentina. A praga da alta de preços sumiu do cenário global e, com alívio, da maior parte da América Latina. As exceções só são importantes porque as políticas econômicas do presidente argentino, Néstor Kirchner, e, em menor grau, a de Hugo Chávez, presidente venezuelano, têm sido recebidas com entusiasmo em alguns recantos do Brasil e apresentadas como modelos a serem seguidos, quando, na verdade, têm inconsistências ameaçadoras. A elevação da inflação nesses países não apenas indica vida curta para esse experimentos como é sinal daquilo que não se deve fazer.

O mais novo inimigo do iracundo Néstor Kirchner foi o próprio instituto encarregado de medir a inflação argentina, o Idec. A responsável pela coleta de preços foi demitida em meio a protestos contra o que parece ser uma tentativa do governo de manipular os índices. O episódio não só revelou que a inflação voltou a incomodar os argentinos - fechou 2006 em 9,8%, depois de atingir 12,8% em 2005 - como seu desenrolar revelou os pendores autoritários da equipe de Kirchner, que desqualificou em público a funcionária demitida. O pano de fundo é a tentativa de Kirchner de impedir que a alta dos preços possa ser um obstáculo em sua caminhada para a reeleição, ou para a eleição de sua mulher, Cristina, caso uma decisão conjugal aponte que ela é a melhor alternativa.

A Argentina se recuperou rapidamente da pior crise de sua história e cresce acima de 8% anuais há três anos pelo menos. A capacidade de investimento da economia não caminha à mesma velocidade, o que fatalmente desembocou na elevação de preços. Mantido artificialmente acima de 3 pesos por dólar, o câmbio não favorece importações para atenuar a alta dos produtos domésticos, ao passo que o Banco Central lança mais pesos na praça com a política de compras sistemáticas de dólar. As reservas argentinas estão na casa dos US$ 30 bilhões, com um superávit comercial de US$ 12,4 bilhões em 2006.

Os juros reais negativos fecham a equação da instabilidade. Eles ajudam a expandir a economia e irrigar o país com crédito barato, ao passo que permite que o Tesouro exiba um superávit nominal de 1,4% do PIB. Mostram também que o superávit primário declinou abaixo dos 2%, significativamente inferior aos 3,5% que o governo argentino brandia contra o FMI, que queria aumentá-lo para mais de 4%. O resultado dessa política, que não tem solidez fiscal e favorece gastos, é mais inflação e, para controlá-la, o governo de Kirchner usa de instrumentos surrados como o controle de preços, acordo de cavalheiros com supermercados e ameaças para os recalcitrantes. Esse esquema pode resistir no curto prazo, mas é insustentável no médio prazo, mesmo com escaladas intervencionistas, que só tendem a inibir a solução - mais investimentos. Kirchner domou o carcomido sistema político argentino e com ele, ou sua esposa, se candidatando à Presidência não há um rival de peso com chances de vitória. Kirchner, porém, fez da inflação abaixo de dois dígitos uma meta eleitoral e fará o que for preciso para que ela seja cumprida.

Controle de preços reforçado é a receita que Hugo Chávez vem usando extensamente na Venezuela, ao mesmo tempo em que o dinheiro do petróleo banca programas sociais que elevam a capacidade de consumo. A inflação atingiu 18% nos doze meses findos em janeiro, enquanto que os juros estão ao redor dos 10%. As importações não são suficientes para atender a febre de demanda em todos os setores da atividade. Em vez de brecar o déficit fiscal, que decuplicou em 2006 (-2,5% do PIB), e extirpar fontes de emissão, Chávez resolveu abater impostos para deter a escassez de carne e obrigou a PDVSA a recolher tributos em dólares, para não inundar ainda mais o mercado com bolívares.

A economia venezuelana caminha para o descontrole e o único trunfo de Chávez ainda é o superávit comercial de US$ 32 bilhões que o petróleo lhe garante. As políticas econômicas de Kirchner e Chávez têm problemas flagrantes que a coreografia dos dois presidentes, às vezes estonteante, não pode esconder. Não servem de modelo nem para o curto prazo, pois começaram a naufragar.