Título: A redistribuição de renda não pode parar
Autor: Saboia, João
Fonte: Valor Econômico, 13/02/2007, Opinião, p. A16

Um dos fatos positivos ocorridos no Brasil ao longo da última década foi a melhoria da distribuição de renda. Apesar de todas as limitações da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) para captar os rendimentos dos indivíduos, por não conseguir levantar a maior parte dos rendimentos dos ativos, especialmente no que se refere aos ganhos financeiros, trata-se da melhor fonte de dados com cobertura nacional.

Alguns dados ilustram o tipo de rendimentos captado pela PNAD e as mudanças ocorridas no período. Enquanto os rendimentos do trabalho representavam 82,2% dos rendimentos da PNAD em 1995, em 2005 estavam reduzidos a 75,9%. Em contrapartida, as aposentadorias oficiais aumentaram de 10,7% para 13,8% e as pensões de 2,8% para 4,3%. A soma de rendimentos do trabalho, pensões e aposentadorias oficiais passou de 95,7% para 94%, representando a quase totalidade dos rendimentos da PNAD. Dessa forma, os demais rendimentos (ex: juros, aluguéis, outras transferências, como o Bolsa Família etc) continuam com uma participação ínfima dentro dos rendimentos levantados pela PNAD.

A melhoria na distribuição de renda na última década é inequívoca. Enquanto em 1995 os 20% com os maiores rendimentos do trabalho recebiam 20,4 vezes mais que os 20% com os menores rendimentos, em 2005 essa relação havia caído para 16,6. Movimento semelhante de melhoria ocorreu com a distribuição do rendimento familiar per capita. Embora as desigualdades na distribuição dos rendimentos ainda permanecessem muito elevadas em 2005, a melhoria encontrada no período foi bastante satisfatória, especialmente quando comparada com o histórico de má distribuição de renda no passado.

Ao mesmo tempo em que a distribuição de renda melhorou, o salário mínimo apresentou crescimento sustentado, totalizando 40% no período, como ilustrado pela figura. Tal fato sugere que o salário mínimo teria colaborado para melhorar a distribuição de renda, não apenas por seu papel de rendimento mínimo legal para o trabalho, como também pelo fato de representar o piso para as pensões e aposentadorias oficiais.

O crescimento do SM no período 1995/2005, foi acompanhado de mudanças na distribuição das pessoas ocupadas segundo o nível de rendimento do trabalho principal. No caso dos empregados com carteira assinada, houve aumento da participação daqueles recebendo 1 SM de 8,3% para 13,1%. Fato semelhante ocorreu com os trabalhadores domésticos com carteira assinada - 38,0% e 46,5%, respectivamente (ver tabela).

-------------------------------------------------------------------------------- A melhoria de 35% na distribuição da renda familiar per capita de 2005 pode ser atribuída ao crescimento do SM --------------------------------------------------------------------------------

Entre os empregados sem carteira assinada, cerca de 20% recebem 1 SM, sem maiores alterações no período. Entretanto, nota-se um aumento na parcela recebendo menos de 1 SM em cerca de dez pontos percentuais. No emprego doméstico sem carteira assinada, houve aumento da parcela recebendo menos de 1 SM e redução daqueles recebendo exatamente 1 SM. Finalmente, entre os trabalhadores por conta própria, houve crescimento da parcela abaixo e igual ao SM. Portanto, o aumento do valor real do SM no período não conseguiu evitar que nas categorias de trabalhadores típicas do setor informal (sem carteira e conta própria) houvesse crescimento do percentual daqueles recebendo menos que 1 SM ao longo da década. Apesar disso, ele continuou a representar importante referência para as remunerações no setor informal da economia.

Para testar até que ponto o aumento do salário mínimo teria influenciado o processo de redistribuição de renda, foi feita uma simulação a partir dos dados de 2005, procurando-se verificar qual teria sido a distribuição de renda se não tivesse havido aumento para o salário mínimo no período. Foram simuladas mudanças nos rendimentos do trabalho principal e nas pensões e aposentadorias oficiais, que representam juntos pouco mais de 90% dos rendimentos captados pela PNAD.

Para os rendimentos do trabalho principal foram reduzidos todos os valores até 1 SM na mesma proporção do aumento de 40% observado para o salário mínimo no período. A idéia subjacente é que o SM estaria influenciando apenas os menores valores do rendimento do trabalho. Assim, o salário mínimo retornaria a seu valor real de 1995, carregando junto os níveis inferiores de rendimento.

Para os rendimentos de pensões e aposentadorias deu-se tratamento semelhante, procurando-se reproduzir o percentual de pessoas que recebiam exatamente o piso em 1995 e distribuindo-se os demais uniformemente entre o antigo e o novo valor do salário mínimo. Em outras palavras, procurou-se fazer o caminho inverso do ocorrido no período quando o aumento real do salário mínimo não apenas aumentava o valor do piso como também arrastava os valores daqueles que recebiam um pouco acima do piso previdenciário.

A comparação entre a distribuição da renda familiar per capita de 2005 antes e após a simulação mostra que 35% da melhoria poderia ser atribuída ao crescimento do salário mínimo no período (tal resultado foi calculado a partir da comparação entre o índice de Gini antes e depois da simulação). Outras simulações mais otimistas foram feitas com resultados ainda mais surpreendentes.

Apesar da simplicidade do exercício, o resultado acima aponta favoravelmente para o salário mínimo por seu importante efeito sobre a distribuição de renda. Mostra, por outro lado, que se a sociedade deseja continuar o processo de melhoria da distribuição de renda, o salário mínimo não pode deixar de crescer no futuro. A atual proposta do governo de reajustar o salário mínimo segundo a inflação e o crescimento da economia é positiva na medida em que sinaliza para a continuidade da recuperação do salário mínimo. Para isso, entretanto, mais do que nunca, é preciso que tenhamos forte crescimento econômico nos próximos anos. Caso contrário, a continuidade da recuperação do salário mínimo correria sério risco de paralisação, com inevitáveis conseqüências sobre o processo de melhoria da distribuição de renda.

João Saboia é diretor do Instituto de Economia da UFRJ. Email: saboia@ie.ufrj.br