Título: Guerra de nervos na Turquia
Autor: Larrabee, F. Stephen
Fonte: Valor Econômico, 14/05/2007, Opinião, p. A11

Com o agravamento do impasse político em torno da escolha de um novo presidente, a Turquia está mergulhando num período crítico que poderá produzir um profundo efeito para a evolução interna do país como democracia secular - e em suas relações com o Ocidente. A candidatura presidencial do islamita moderado Abdullah Gul, atual ministro de Relações Exteriores, foi rejeitada pela mais alta Corte turca, e as eleições parlamentares marcadas para novembro foram antecipadas para julho, numa tentativa de romper o impasse político. Mas é improvável que esses passos consigam dissipar as tensões entre o governo do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan e os militares turcos, que se vêem como os guardiões do Estado secular no país.

Ao contrário, essas tensões agravaram-se, em conseqüência de mudanças nos altos escalões das forças armadas turcas, especialmente devido à substituição, em agosto passado, do general Hilmi Ozkok no posto de Chefe do Estado-Maior da Turquia. Ozkok era um moderado que mantinha postura discreta e buscava desenvolver boas relações de trabalho com Erdogan. Em contraste, seu sucessor, general Yasar Buyukanit, é um enérgico secularista que tem sido bem mais assertivo na colocação das posições dos militares.

Em discurso, em outubro passado, perante o Comando das Academias Militares, em Istambul, Buyukanit advertiu publicamente que a Turquia defronta-se com uma grave ameaça do "fundamentalismo". Muitos encararam essa acusação como uma crítica direta a Erdogan e ao Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), hoje no poder.

As tensões chegaram a um ponto de ebulição em 27 de abril, quando o Estado Maior divulgou uma declaração enfatizando que "as forças armadas turcas mantêm sua firme determinação de cumprir seus deveres segundo estipulados na legislação para proteger o imutável caráter da República da Turquia. A lealdade dos militares a essa essa determinação é absoluta".

Essa declaração em palavras duras foi interpretada como uma advertência velada, mas inconfundível, de que os militares estariam dispostos a intervir, se a eleição de Gul para a presidência resultasse de um esforço do governo Erdogan de pressionar por sua agenda islâmica ou tomar medidas que ameacem o caráter secular da ordem política turca.

A declaração foi particularmente significativa porque as forças armadas turcas intervieram quatro vezes no processo político desde 1960 - a última vez em l997 -, quando forçaram a renúncia do governo do primeiro-ministro Necmettin Erbakan, de orientação islamita, no que veio a ser denominado "golpe pós-moderno".

Essas tensões foram agravadas por diferenças entre Buyukanit e Erdogan sobre o confronto com os separatistas curdos na Turquia, liderados pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que os militares consideram uma séria ameaça à integridade territorial da Turquia. Ataques de guerrilheiros do PKK resultaram em mais de 35 mortes desde l984. A partir de janeiro de 2006, as incursões do PKK através da fronteira, partindo de refúgios seguros no norte do Iraque, resultou em aproximadamente 600 mortes, muitas delas de membros das forças de segurança turcas.

-------------------------------------------------------------------------------- Para que o país se torne uma democracia madura e moderna, os militares precisarão aceitar papel menos intrusivo na política --------------------------------------------------------------------------------

À medida que cresceu o número de baixas turcas, a paciência dos militares começou a se esgotar, e Erdogan passou a sofrer crescente pressão interna para tomar ações militares unilaterais contra o PKK.

Durante coletiva de imprensa em 12 de abril, Buyukanit argumentou incisivamente que uma operação militar no Iraque visando eliminar a ameaça do PKK era "necessária" e "seria útil". Seus comentários refletem a crescente frustração dos militares diante da falta de apoio americano concreto e pareceu ter a intenção de intensificar as pressões sobre Erdogan para que autorize operações unilaterais através da fronteira contra bases do PKK no norte do Iraque.

Mas o problema dos curdos na Turquia não pode ser solucionado por meios militares. As diferenças podem ser resolvidas apenas mediante diálogo entre o governo turco e os líderes dos curdos iraquianos, bem como por medidas econômicas e políticas visando melhorar as condições de vida e o respeito aos direitos políticos da população curda na Turquia.

O governo de Erdogan parece reconhecer isso e demonstrou, recentemente, interesse em iniciar diálogo com os líderes curdos iraquianos. Os militares turcos, porém, se opõem a um diálogo em alto nível com os curdos iraquianos, alegando que o Partido Democrático do Curdistão (DPK), comandado por Massoud Barzani, e a União Patriótica do Curdistão, liderada pelo presidente iraquiano Jalal Talabani, apóiam o PKK material e politicamente.

Em vista do papel central desempenhado pelos militares na política turca, especialmente em questões delicadas de segurança nacional, Erdogan necessitará apoio dos militares - ou ao menos a aquiescência deles - para que alguma iniciativa tenha sucesso. Assim, ele pode estar relutante em dar andamento a um diálogo com os curdos iraquianos num momento em que são agudas as tensões com os militares envolvendo a influência dos islamitas na política turca.

Erdogan empenhou-se em esvaziar a atual crise, ao declarar que irá empenhar-se tanto em uma antecipação das eleições como em amplas mudanças na Constituição, fazendo com que os presidentes passem a ser eleitos por voto popular, em vez de escolhidos pelo Parlamento. Isso conferiria a um presidente maior legitimidade e independência, simultaneamente diminuindo os temores de que a presidência poderia ser tentada a seguir a agenda de um determinado partido.

Ao mesmo tempo, para que a Turquia venha a se tornar uma democracia madura e moderna, os militares precisarão aceitar um papel menos intrusivo na política turca. Embora alguns passos tenham sido dados nessa direção durante os últimos anos, a atual crise evidencia que a Turquia tem ainda um longo caminho a percorrer, antes que esse alvo seja plenamente concretizado.

F. Stephen Larrabee é especialista em Segurança Européia na RAND Corporation, uma organização de pesquisas sem fins lucrativos. © Project Syndicate/Europe´s World, 2007. www.project-syndicate.org