Título: Chance histórica
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 18/12/2010, Mundo, p. 26

entrevista - ALAN CHARLTON, embaixador do Reino Unido

Parceiros do Brasil há dois séculos, britânicos apostam na coincidência de mandatos entre Dilma e David Cameron

O embaixador britânico no Brasil, Alan Charlton, se lembra bem da última reunião que o então primeiro-ministro Gordon Brown teve com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em março de 2009, uma semana antes da Cúpula do G-20 em Londres. Brown veio a Brasília para acordar uma mensagem positiva em meio à recessão global. ¿Foi um encontro entre amigos, mas muito sério. Brown, que é especialista na área de economia e finanças, falou um pouco mais tecnicamente, e o presidente Lula, das questões políticas ¿ o que foi uma combinação muito boa para ser levada à cúpula¿, recorda Charlton.

A sintonia evidencia, para o embaixador, o grau de aproximação que os dois governos atingiram nos últimos oito anos, tanto nas questões bilaterais como na coordenação para temas da agenda global. ¿Durante a gestão do presidente Lula, o Brasil se internacionalizou muito mais do que no passado. Vimos o Brasil buscar mais relações comerciais, abrir mais embaixadas e participar mais nos temas internacionais sobre comércio, mudanças climáticas, Conselho de Segurança da ONU. Por isso, o Brasil é hoje um parceiro muito mais importante¿, avalia.

Segundo Charlton, uma coincidência no período dos mandatos proporcionará que os dois governos, nos próximos quatro anos, consigam dar uma boa continuidade aos avanços conseguidos por seus antecessores. Para ele, o fato de o governo de Dilma Rousseff se estender até o fim de 2014, e o de David Cameron até maio de 2015, proporciona um vasto período para entendimentos. ¿Do nosso lado, queremos falar com o governo brasileiro sobre os resultados concretos que podemos atingir em todas as áreas: política externa, defesa, ciência e tecnologia, energia, mudanças climáticas, desenvolvimento sustentável, educação e cultura.¿

Charlton nega que a grave crise atravessada por seu país, que teve de anunciar cortes de gastos históricos há dois meses, vá prejudicar as relações com o Brasil. ¿Felizmente, para nós, o corte nas relações exteriores não foi tão grande como nos outros ministérios. Temos um ministro forte e um premiê que é muito engajado na política externa¿, garantiu. O Reino Unido está de olho, especialmente, em uma parceria militar, com a oferta para venda de navios-patrulha e fragatas, e do desenvolvimento conjunto do ¿navio do futuro¿. ¿Isso incluiria uma transferência de tecnologia enorme para o Brasil e o desenvolvimento de uma indústria de construção de navios muito modernos aqui¿, defendeu.

Nos oito anos em que esteve no poder, o presidente Lula teve contato com três diferentes governos no Reino Unido. Como os dois lados levaram a parceria nesse período? Foi muito bom para a relação entre os dois países. Primeiro com Tony Blair, depois com Gordon Brown e, mais recentemente, com David Cameron. Com Brown, Lula teve um relacionamento muito estreito, que começou muito antes de ele se tornar primeiro-ministro. No início de seu mandato, Lula procurou Brown para conversar sobre assuntos financeiros, e disse ter recebido várias ideias muito construtivas. A parceria foi intensa até o último ano, quando, uma semana antes do encontro do G-20 em Londres, em março, Brown visitou o Brasil para falar com Lula sobre essa cúpula. Foi um encontro entre amigos, mas muito sério. Brown, que é especialista na área de economia e finanças, falou um pouco mais tecnicamente, e o presidente Lula, das questões políticas ¿ o que foi uma combinação muito boa para ser levada à cúpula. Era um momento de muito nervosismo no mundo, por causa da recessão global decorrente da crise financeira, e os 20 países saíram com a mensagem de que era possível coordenar as políticas de forma técnica e voltar para casa confiando em que a situação não ia piorar. Nestes oito anos, os dois países mantiveram uma coordenação muito estreita nos fóruns multilaterais, especialmente na área da economia, mas também sobre mudanças climáticas, desenvolvimento sustentável e energia. Reino Unido e Brasil apresentaram juntos artigos sobre a importância da biodiversidade na Cúpula de Nagoya, há algumas semanas, e ficaram responsáveis por levar a discussão para a Cúpula de Cancun.

Por que uma coordenação nesse nível não foi possível em governos anteriores? No período do presidente Fernando Henrique Cardoso, ele e Tony Blair tinham um relacionamento estreito, e mantêm até hoje. Mas agora isso é muito mais intenso, e há uma razão. Durante a gestão do presidente Lula, o Brasil se internacionalizou muito mais do que no passado. Apesar de ser um país enorme, com um mercado doméstico muito grande, que não depende tanto do comércio internacional, vimos o Brasil buscar mais relações comerciais, abrir mais embaixadas e participar mais nos temas internacionais sobre comércio, mudanças climáticas, Conselho de Segurança da ONU. Por isso, para um país como o Reino Unido, o Brasil é hoje um parceiro muito mais importante.

E isso foi uma conquista do presidente Lula ou uma consequência natural do crescimento do país? O presidente Lula foi e ainda é uma figura muito importante no mundo, e nós esperamos que ele continue ativo na política exterior. Para o Brasil e para o mundo, foi muito interessante ter um presidente que começou numa posição modesta, tornou-se presidente de um país tão importante como o Brasil e depois se hospedou no Palácio de Buckingham, o que é uma coisa muito rara no Reino Unido. Um assessor próximo a ele me disse que naquela época, em 2006, ele (Lula) ligou para a mulher para contar que tinha tomado banho no Palácio de Buckingham. E essa foi uma visita importante para o relacionamento, porque assinamos vários acordos de cooperação, especialmente em saúde, ciência e tecnologia. Ainda hoje trabalhamos em cima da agenda dessa visita.

Em quais temas da agenda internacional Brasil e Reino Unido tiveram posturas semelhantes? Os princípios fundamentais do Reino Unido e do Brasil são muito parecidos: a defesa dos direitos humanos, do multilateralismo e da democracia. Começamos a cooperar muito mais no que concerne ao Conselho de Segurança, tema sobre o qual mantemos reuniões frequentes, também com os franceses. Outra área muito importante é a ajuda a países pobres. Entre os dois ministérios, há um relacionamento muito estreito, e espero que no futuro tenhamos a oportunidade de fazer muito mais juntos.

A postura do Brasil em relação ao programa nuclear do Irã, no entanto, não foi compartilhada pelo Reino Unido. A iniciativa do Brasil e da Turquia para fechar um acordo sobre esse reator nuclear de pesquisa foi uma tentativa boa. É verdade que a política sobre as sanções, aplicada depois, foi um pouco diferente, mas numa parceria é possível ter opiniões um pouco divergentes sobre alguns assuntos. Eu, pessoalmente, continuo a falar com o Itamaraty sobre o Irã e as informações que temos do nosso embaixador em Teerã. Nosso diretor-geral para assuntos políticos esteve no Brasil umas semanas atrás, e um dos tópicos da visita foi o Irã. Nós temos ideias um pouco diferentes sobre as sanções, mas isso não representa um problema na relação entre os dois países.

O que o Reino Unido espera das relações bilaterais no governo Dilma? De um dos lados, haverá um grau grande de continuidade. A eleição de Dilma Rousseff foi uma votação pela continuidade do sucesso da gestão do presidente Lula. Do outro lado, temos um novo governo no Reino Unido, um governo de coalizão, que traz novidades na política externa. Uma delas é a prioridade no relacionamento com os grandes países emergentes. Isso ficou evidente nas primeiras grandes visitas do primeiro-ministro, David Cameron, que foi à Turquia, à Índia e à China. E ele quer visitar o Brasil em 2011. No ano que vem, também vamos ter uma visita do vice-primeiro-ministro, Nick Clegg, e do nosso chanceler, William Hague, e esperamos receber autoridades brasileiras no Reino Unido. O motivo é conversar sobre uma agenda conjunta para os próximos quatro anos, já que o período dos dois governos vai coincidir. Do nosso lado, queremos falar com o governo brasileiro sobre os resultados concretos que podemos atingir em todas as áreas: política externa, defesa, ciência e tecnologia, energia, mudanças climáticas, desenvolvimento sustentável, educação e cultura. Na área de ciência e tecnologia, por exemplo, o Reino Unido é o parceiro número dois do Brasil, depois dos EUA. Nós temos uma situação muito favorável para aumentar isso ainda mais.

O Reino Unido, que organizará as Olimpíadas de Londres em 2012, também tem interesse em parcerias para os jogos do Rio? Esse será um momento muito especial. Já temos várias iniciativas na área da sustentabilidade, na área de segurança, além de dois acordos bilaterais: um sobre troca de experiências em grandes eventos esportivos e um sobre a facilitação de delegações comerciais nos dois países. O movimento olímpico exige essa cooperação entre as sedes e, para nós, essa é uma grande oportunidade de garantir legados muito positivos.

O grave deficit que assola o Reino Unido poderá afetar o comércio e as relações com o Brasil? Há dois pontos que é preciso destacar: a atitude de nosso novo governo, que começou com a grande prioridade doméstica de eliminar o deficit estrutural durante o período do atual parlamento, mas também a garantia de que haverá uma política externa ainda mais ativa. É um contraste muito interessante. Felizmente, para nós, o corte nas relações exteriores não foi tão grande como nos outros ministérios. Temos um planejamento para reduzir o número de diplomatas britânicos durante os próximos cinco anos, mas vamos empregar mais funcionários locais. Temos um ministro das Relações Exteriores forte e um premiê que é muito engajado na política externa. Então, apesar da nossa situação financeira, vamos ter mais energia nesse relacionamento bilateral.

Quais são as áreas mais promissoras para investimentos, dos dois lados? Certamente, a área de agricultura. Já temos uma implantação da Embrapa no laboratório Rothamsted, que é o mais antigo do mundo na área da ciência da agricultura, mas também as empresas devem investir e cooperar com o Brasil nesse campo. Na área de petróleo e gás, não só o Grupo BG, mas também a Shell e a BP (British Petroleum) vão investir mais aqui, inclusive em etanol. Para o Brasil, é muito importante investir em alta tecnologia no Reino Unido. Eu percebo a fascinação dos brasileiros com o modelo britânico de cooperação entre as universidades e as empresas de alta tecnologia, e já temos dinheiro brasileiro investido em empresas desse tipo.

E na defesa? O interesse do Reino Unido em fechar parcerias nessa área vai além do comércio? Essa é uma área tradicional entre os dois países. O Brasil, durante décadas, comprou vários equipamentos do Reino Unido, principalmente a Marinha. E, neste momento, estamos conversando de forma mais intensa, para falar de todos os tópicos: a estratégia, o treinamento, tudo. Nesta semana, uma equipe do governo britânico e da BAE Systems veio ao Brasil para dar mais informações sobre a proposta (da venda de fragatas e navios-patrulha) feita para a modernização da Marinha brasileira. A ideia é construir o navio do futuro, chamado de ¿global combat¿, com vários parceiros do mundo. Estamos conversando com Brasil, Canadá, Turquia, Nova Zelândia e Austrália. Isso incluiria uma transferência de tecnologia enorme para o Brasil e o desenvolvimento de uma indústria de construção de navios muito modernos aqui. Essa tentativa é mais um exemplo do interesse em cooperar com o Brasil não só na área de defesa, mas de ciência e tecnologia avançada.

Como membro permanente do Conselho de Segurança, qual a postura do Reino Unido sobre a ampliação do órgão e a inclusão do Brasil? Temos essa visão conhecida, comum com a França. Defendemos uma reforma do conselho nas duas categorias: membros permanentes e não permanentes. O tamanho do conselho é um tema, mas não deve ser tão grande que não possa funcionar. No que diz respeito à categoria permanente, defendemos a entrada de Brasil, Índia, Japão e Alemanha, e o ministro William Hague reafirmou isso há algumas semanas. Também defendemos a reforma do Fundo Monetário Internacional (FMI) para que o Brasil e outros países tenham uma fatia maior dos direitos de votação. É necessário que as nossas instituições internacionais reflitam o mundo atual, e não o mundo de 50 anos atrás. E o Brasil é parte disso.