Título: Modernizar os partidos é missão dos eleitos de 2006
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 31/10/2006, Opinião, p. A16

Este foi o processo eleitoral mais tenso desde a redemocratização brasileira e aquele que radicalizou mais ânimos e posições. Não se deve, contudo, lamentar quatro penosas semanas de segundo turno. A polarização entre os candidatos Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin, a despeito dos exageros de ambas as campanhas, conferiu maior clareza às posições de ambos e deu aos eleitores elementos para um voto de convicção. Luiz Inácio Lula da Silva, reeleito neste segundo turno para mais um mandato de quatro anos, assume o comando da nação com maior legitimidade do que se fosse sufragado no primeiro turno, com uma margem apertada da maioria de votos válidos.

Se o PT e o presidente reeleito aprenderam com os erros do primeiro mandato, contudo, deverão ter claro que a legitimidade conferida pelas urnas, se porventura vier a dar uma trégua para o governo nos meses que se seguem, não prescinde das habilidades de condução da micropolítica, da capacidade de negociação e conciliação "republicanas" de interesses e, fundamentalmente, de um objetivo claro, para cuja realização deve confluir a gestão política.

O êxito de um governo de coalizão de fato depende tanto de habilidade política como de clareza de projeto para o país. É em torno de propostas de futuro que se deve fazer acordos no presente. A fórmula do primeiro mandato do governo Lula, que reunia num único governo da esquerda à direita, por definição tornava impossíveis os apoios programáticos. O escândalo do mensalão relativizou o poder dos votos dos pequenos partidos de direita no Congresso e as urnas deram uma importância decisiva a um acordo de poder com o PMDB. Teoricamente ao centro, a grande federação de partidos regionais permitiria uma negociação em torno de princípios - e é mais fácil o centro e a esquerda se entenderem. Como, no entanto, o PMDB é um partido de frouxa organicidade, abre-se a perspectiva de que, em vez de negociar com um grande partido, o governo tenha que abrir uma frente de acordos compartimentados que, se não forem cuidadosos, poderão dar margem a um novo mensalão. O plano do presidente Lula, segundo noticiou o Valor ("Governo revê critérios para a escolha de futuros ministros", 27/10), é manter a negociação com a cúpula partidária e responsabilizá-la pelo grau de coesão partidária.

Embora esta seja a alternativa mais "republicana", nem o governo nem a oposição podem jogar mais para baixo do tapete a discussão sobre regras legais mínimas de convivência partidária. Competência para lidar com a micropolítica, por si, não resolve o problema. Desde a Constituição de 1988, o sistema partidário é regido por normas extremamente elásticas de convivência interna, que praticamente tornam o detentor de um mandato seu único dono. Não existe compromisso partidário - e isso afeta tanto o governo, como a oposição. O descompromisso com a legenda sob a qual foi eleito dá uma imensa flexibilidade para o parlamentar aderir ao governo, se isso for de sua conveniência, ou, num partido governista, barganhar apoios e votos de acordo com seus interesses mais imediatos. Não existe partido que consiga tecer vínculos entre seus integrantes nesse cenário. E não existe governo que possa negociar uma coalizão séria numa realidade em que existe um grau imenso de descompromisso de seus integrantes com a legenda que os abriga.

Nesse quadro, não existe governo que consiga governar nem oposição que possa cumprir o seu papel de pressão e fiscalização. Os partidos são a base do sistema democrático e estão sob imenso desgaste. Fortalecê-los, torná-los orgânicos, dar instrumentos para que possam tecer unidades internas em torno de princípios - esta é a missão institucional dos que foram eleitos em 2006.

As leis, no entanto, constituem apenas o ponto de partida para a recriação partidária. As legendas que saíram das urnas estão em crise e as suas lideranças e militâncias, independente de mudanças legais, ou movem suas agremiações em direção a uma sociedade que se modernizou mais do que elas nessa última década, ou estarão cada vez mais descolados dela. E o afastamento do sistema partidário de suas bases sociais é uma péssima contribuição dos partidos para a democracia.