Título: O impacto cósmico nos vinhos produzidos em Le Clavoillon
Autor: Lucki, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 31/10/2006, Agronegócios, p. D6

Mesmo os mais dedicados apreciadores e ferrenhos defensores dos tintos de Bordeaux concordam que, em matéria de vinhos brancos, a Borgonha é imbatível. Só lá a Chardonnay consegue atingir o balanço ideal entre textura e frescor, exatamente a característica que há séculos tornou-a célebre. É raro se encontrar fora dali, vinhos que sejam tão autênticos e expressem com precisão a difícil arte de combinar força com delicadeza.

Para tanto é essencial um intrincado e indissociável conjunto de fatores favoráveis, entre eles solo, insolação e clima. Isso, com efeito, é o que se entende por terroir, noção que na Borgonha é fundamental defender e saber expressar. Daí a importância que lá adquire a figura do produtor. Nunca é demais lembrar que naquela região os vinhedos são bastante fragmentados, o que significa que uma parcela tem na sua grande maioria vários proprietários, cada um com suas próprias parreiras. Nos seus domínios o produtor impõe sua filosofia e define seus objetivos com total liberdade. Uns são zelosos e competentes, trabalhando para extrair as melhores uvas e com elas produzir um vinho que tenha qualidade e seja representativo daquele terroir. Outros nem tanto. O processo de escolha de um borgonha começa, assim, por saber quem é o produtor. O passo seguinte é procurar se aprofundar nas nuances que cada terroir oferece.

Imagine-se então um produtor de primeira linha, como o Domaine Leflaive, talvez o nome mais importante da Borgonha quando se fala de vinhos brancos. Contando com significativos 24 hectares de vinhedos, área considerável para a região, ele está praticamente concentrado na comuna de Puligny-Montrachet, onde tem parcelas em quatro Grand Crus - Montrachet, Chevalier-Montrachet, Bâtard-Montrachet, e Bienvenues-Bâtard-Montrachet - e em quatro Premiers Crus - Clavoillon, Folatières, Combettes e Pucelles, além de vinhas em A.O.C. Villages e Bourgogne Blanc. Ainda que sejam todos conduzidos com o mesmo esmero e rigor, vinificados no mesmo lugar e pela mesma equipe, e a distância máxima que os separa não seja maior do que dois quilômetros, há diferenças básicas entre os vinhos.

A começar pelos Grand Crus, a classificação mais elevada da Borgonha: o Bienvenues é mais sutil e delicado, contrastando com a opulência e masculinidade de seu vizinho de cerca, o Bâtard; o Chevalier, em contrapartida, situado mais acima na encosta e com uma maior inclinação que expõe mais as parreiras ao sol da manhã, é mais refinado e feminino, sem perder em estrutura - é o melhor exemplo para se mostrar a diferença entre força e brutalidade. Aí vem o último da série dos Grands Crus brancos, o rei Montrachet. Depois de vinhos femininos, charmosos, porém profundos de um lado, se opondo a masculinos, mais robustos e densos, de outro, que característica ainda sobra? A síntese de tudo. O Montrachet consegue juntar potência e elegância ao mesmo tempo, em perfeita harmonia, com uma complexidade aromática sem igual. A explicação não pode estar somente no fato de estar exatamente no centro de todos, com uma justa proporção de argila e calcário assentada sobre rocha, uma leve declividade de 10% e uma perfeita exposição leste/sudeste. Há o imponderável, que faz com que a perfeição seja algo inexplicável.

Entre os quatro Premiers Crus, as diferenças são também evidentes: o Pucelles, separado dos Grand Crus Bienvenues e Bâtard apenas por uma ruela, herda deles uma riqueza e nobreza que o destaca, principalmente do Clavoillon, mais pesado e austero; enquanto isso o Folatières tem força e cremosidade, com notas minerais, um arquétipo do Puligny; o Combettes, na divisa com a comuna de Meursault, mescla as virtudes desta com as de Puligny-Montrachet, apresentando junto com a mineralidade, toques amanteigados, com mel e castanhas.

Perceber as extravagâncias que o terroir da Borgonha proporciona é menos complicado do que faz parecer essa tentativa de descrevê-las por escrito. É suficiente ter sensibilidade e vontade de ir atrás quando a oportunidade surgir. Essa, mais um elevado senso de agradecimento a tão celestial e generosa iniciativa, era a única obrigação a que estava sujeito um seleto grupo reunido no Rio de Janeiro no último fim de semana para uma super-degustação comandada pessoalmente por Anne-Claude Leflaive, responsável desde 1990 pelos destinos do Domaine Leflaive. Foi, na verdade, bem mais do que uma comparação entre os diversos terroirs que compõem o portfólio da vinícola. É que, afora duas degustações horizontais (vinhos diferentes, todos do mesmo ano, no caso 1992 e 1995), seguiu-se uma prova de todos os Montrachets produzidos até hoje pela propriedade, de 2004 até 1991, algo inédito até para Madame Leflaive.

As duas primeiras baterias, as horizontais de 1995 e 1992, permitiram avaliar algo mais do que "simplesmente" a tipicidade de cada terroir. Escancarou-se nesse período de três anos todas as inovações que Anne-Claude Leflaive estava tentando implantar, o quão procedentes eram essas medidas, e quanto elas contribuíram para o próprio amadurecimento da sua mentora. Explica-se: quando ela assumiu em 1990, mesmo tendo sucedido um personagem de grande respeito na Borgonha, seu pai, Vincent Leflaive, a região estava apenas saindo de uma fase difícil, de pouca atenção às vinhas, com excessos de rendimento e utilização desmedida de pesticidas e herbicidas.

Após um rápido período de adaptação, onde, inclusive, dividiu a gerência com seu primo Olivier - ele saiu para iniciar seu próprio negócio -, Anne Claude começou a dar mais atenção aos vinhedos, primeiramente adotando procedimentos biológicos para em seguida ir mais fundo e abraçar os preceitos da escola biodinâmica.

A biodinâmica leva em conta, afora os aspectos vegetativos, terrestres, da parreira, também o lado cósmico, com todas as interações da lua e dos planetas sobre as plantas e a vida microbiana existente no ambiente. A rigor a adoção da biodinâmica foi muito consciente. Ela resolveu experimentar os dois métodos, lado a lado, em seu vinhedo Le Clavoillon. Isto é, parte desse vinhedo foi conduzido biologicamente e parte seguindo o conceito mais radical da biodinâmica. A base de dados era a mesma, já que as parreiras tinham a mesma procedência, o terreno era o mesmo e a forma de vinificar idem.

Durante sete anos Anne-Claude Leflaive foi comparando as análises de solo, observou as diferenças entre as folhagens e as uvas, passando por exames dos vinhos em laboratório e, evidentemente, por degustação. Tive a oportunidade de participar de uma dessas provas em 1994 e as diferenças foram significativas. A colheita de 1997 foi muito importante porque permitiu constatar de maneira precisa os resultados dos dois métodos, em particular com relação à acidez dos vinhos. Anne-Claude conta que, na época, recebeu um conhecido enólogo local, com visão global do que por lá se passava, e ele se declarara impressionado com índices de acidez tão bons, contrastando com o que o que se passava com a grande maioria dos vinhos dessa safra. Era o da parcela conduzida por biodinâmica, e o fato possibilitava dar por terminada a fase de experiências.

Nem todos acreditam nos métodos biodinâmicos, alegando que os vinhos melhoram porque há mais cuidado na condução do processo desde o vinhedo até a vinificação. De fato não há comprovação científica, apenas resultados práticos. Pelo sim, pelo não, vale a frase "yo no creo en brujas pero que las hay las hay".

Um trabalho mais apurado, em todo caso, fez com que os vinhos de 1995 tivessem melhor performance que os de 1992, a despeito desta última safra ser considerada qualitativamente superior. Como bem comentou Madame Leflaive, os 1992 são mais marcados pelo ano e os 1995 pelo terroir. Isso embute pureza e elegância, a essência, em suma, do que se pretende de um borgonha (branco ou tinto).

Na fantástica vertical de Montrachets - a parcela tem apenas 821 m², situa-se na parte pertencente à comuna de Chassagne-Montrachet e foi comprada em 1991 - toda a exuberância desse terroir mágico está presente. Mesmo assim, e com a característica intrínseca de cada safra bem marcada, fica claro - mais ainda - toda a evolução qualitativa por que passou o Domaine Leflaive. É difícil imaginar um vinho branco tão perfeito quanto o 2002 e mesmo o 1999, cada um no seu estilo - o 2002 é mais extrovertido, o 1999 é instigante. Na bateria dos mais antigos, de 1997 a 1991, o destaque fica com o 1996, seguido do 1995 e do 1992. Algum abaixo de excelente? Nenhum. Ou melhor, tenho algumas dúvidas. Acho melhor repetir a degustação.

colaborador-jorge.lucki@valor.com.br