Título: Governo Blair é melhor do que a sua avaliação atual
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 11/05/2007, Internacional, p. A11

Poucos britânicos, ao que parece, derramarão uma lágrima quando Tony Blair sair de cena, em 27 de junho, depois de uma década como primeiro-ministro, como ele finalmente anunciou ontem. Não é de hoje que as pesquisas de opinião apontam para a impopularidade de Blair. Em 3 de maio, eleições locais e regionais deram aos eleitores uma última oportunidade de dar um bom ponta-pé no traseiro de Blair. E eles o fizeram com os dois pés, entregando o poder a conservadores, nacionalistas escoceses, nacionalistas do País de Gales - a qualquer um, exceto os trabalhistas, nos quais perderam a confiança. A maioria gostaria que Blair tivesse renunciado no ano passado - opinião compartilhada por seu provável herdeiro, Gordon Brown, que agora defronta-se com uma acirrada disputa contra David Cameron, do Partido Conservador.

Ou os britânicos são um bando de ingratos, ou Blair merece esse bota-fora esfarrapado por ter feito muito pouco e desapontado muito. A verdade, como de costume, é mais complicada.

Na maioria dos quesitos, Blair deixou o Reino Unido melhor do que era em 1997. O crescimento econômico ininterrupto melhorou substancialmente a vida do britânico médio, ainda que a carga tributária tenha crescido. Há menos escolas precárias e hospitais dilapidados. Embora falte rigor a muitos exames, mais crianças estão alcançando notas respeitáveis e progredindo em seus estudos até a universidade. Graças ao salário mínimo e a créditos tributários para famílias trabalhadoras pobres, foram contidas as forças que faziam crescer incessantemente a desigualdade de renda desde o governo de Margaret Thatcher.

Isso tudo é mensurável; menos fáceis de comprovar, mas igualmente valiosas, são as maneiras como Blair contribuiu para tornar o Reino Unido um lugar mais tolerante e cosmopolita. Existe, agora, uma legislação sobre direitos humanos; a união civil entre homossexuais é reconhecida. Autogoverno para a Escócia, País de Gales e, agora, até mesmo a Irlanda do Norte tem ampla democracia - a paz na região é de fato um dos maiores êxitos de Blair.

Sob Blair, o antiquado e bolorento Reino Unido tornou-se um modelo internacional de abertura. Imigração em larga escala, especialmente de ex-países comunistas da Europa Oriental, dinamizou a economia sem provocar graves reações de ressentimento.

Ao abraçar a globalização, Londres tornou-se uma das mais dinâmicas cidades do mundo. Blair modificou os termos do debate na Europa (Nicolas Sarkozy é outro direitista que muito deve a Blair), e o primeiro-ministro também fez mais do que qualquer outro líder ocidental para obrigar as pessoas a dar atenção às mudanças climáticas e à pobreza na África.

Poderíamos seguir nessa lista, acrescentando notas e ressalvas: em economia, crédito insuficiente é atribuído aos conservadores que vieram antes de Blair; na imigração, para cada satisfeita garçonete tcheca no Covent Garden há vários muçulmanos zangados em Leeds; em liberdades civis, ele ajudou os gays, mas não os presidiários ou jovens desfavorecidos. Mas, tudo somado, Blair melhorou o Reino Unido, e ele esteve, de modo geral, presente do lado do progresso liberal. "The Economist" não se arrepende por tê-lo apoiado.

Por que é, então, que Blair deixa um sabor amargo no paladar britânico - e não apenas nas bocas da velha esquerda socialista e da direita xenófoba? Para milhões de pessoas, basta uma palavra: Iraque. Mas o desapontamento é anterior.

Este, afinal de contas, foi o mais talentoso político de sua geração - sem sombra de dúvida na Europa, e (dependendo da opinião do leitor sobre o mais astuto, porém menos disciplinado, Bill Clinton) talvez num palco ainda mais amplo. Antes de chegar ao poder, Blair já tinha um enorme feito a seu crédito: ter arrastado o Partido Trabalhista para um centro eleitoralmente viável. Em 1997, ele tinha não só uma grande maioria parlamentar, mas um país que queria o que ele também desejava: uma economia que combinasse os ganhos duramente conquistados do thatcherismo com maior ênfase em justiça social e modernização dos serviço públicos. Como pôde ele fracassar na missão?

Sendo espantosamente despreparado. Retrospectivamente, é difícil exagerar o desperdício do primeiro mandato de Blair. Sob uma retórica visionária, o novo governo pouca noção tinha sobre como melhorar os serviço públicos, exceto desmantelando as tentativas bem-sucedidas do governo anterior de melhorar sua qualidade injetando mais competição. Com um par de exceções (entre elas, as escolas primárias), mais mal do que bem foi feito à saúde e à educação. Impossibilitado de exibir sólidos progressos, Blair resgatou as técnicas de oposição, distorcendo as notícias para passar uma impressão de atividade e progresso. Sua popularidade continuou a desafiar a gravidade, mas sua autoridade foi desperdiçada - e cresceu o descrédito da opinião pública.

Em seu segundo mandato, Blair acabou elaborando efetivamente um modelo para reforma do setor público - um modelo que envolveu refinar as políticas de desenvolvimento do mercado interno inauguradas pelos conservadores, mas com muito mais dinheiro do Estado. Mas, nesse momento, o 11 de setembro de 2001 - e logo depois o Iraque - batiam às portas de Downing Street (residência do premiê). Desde a invasão, em 2003, - com seu partido dividido e Brown muito freqüentemente disparando fogo amigo -, a reforma dos serviços públicos perdeu ímpeto. A seu crédito, é preciso reconhecer que Blair tentou avançar, colocando seu mandato em risco, por exemplo, na defesa do pagamento de mensalidades variáveis nas universidades. Mas o fato é que, embora os serviços tenham melhorado, continuam piores do que deveriam ser; e muito dinheiro foi jogado fora. Os britânicos vão se arrepender desses anos desperdiçados tanto quanto Blair arrepende-se hoje.

Em contraste, na questão do Iraque, fonte de tanto infortúnio, a história poderá ser um pouco mais benévola para com Blair do que hoje seus concidadãos. Ninguém nega o evidente desastre dos últimos quatro anos. Seria conveniente para os que defenderam a guerra, como esta revista, alegar ter sido levados a apoiá-la de modo enganoso por Blair; conveniente, porém injusto. De fato, ele deu maior peso às escassas evidências dos serviços de inteligência - de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa - do que as informações poderiam corroborar. Mas há pouca dúvida de que ele (e muitos outros), à época, acreditavam nisso. E também não foi ruim querer livrar o mundo de um tirano brutal. Afinal, Blair tinha construído a coalizão liderada pelos EUA que pôs fim à carreira genocida de Slobodan Milosevic; e a invasão do Afeganistão, inicialmente, tinha sido um sucesso.

Quanto ao catastrófico gerenciamento posterior, Blair deveria ter insistido muito mais, em termos de planejamento, para o pós-guerra. E, sim, um amigo mais ousado dos americanos poderia ter pressionado publicamente pela saída de Donald Rumsfeld, pelo fim do pesadelo na base de Guantânamo, para que George Bush tivesse se empenhado mais na criação de um Estado palestino.

Mas o erro maior cabe a Bush, por ter se recusado a ouvir alguém que evidentemente sabia mais sobre o mundo árabe - e, com efeito, sobre terrorismo - do que ele. Tendo em vista essa obstinação, Blair tinha duas opções reais: abandonar o Iraque e os EUA a uma sorte ainda pior; ou ficar no mesmo barco, esperando reparar parte dos danos que o Reino Unido contribuiu para causar. No geral, ele fez a coisa certa.

Talvez a maior homenagem a Blair esteja no fato de que tanto Brown como Cameron não queiram mudar fundamentalmente o rumo que Blair definiu. Ambos permanecerão no Iraque, por algum tempo, e no Afeganistão. Apesar de seu ceticismo inicial, é improvável que Brown abandone as reformas de Blair nos serviço públicos. A popularidade de Cameron baseia-se na ocupação do centro blairiano.

Se Margaret Thatcher, em momentos muito mais difíceis, deu ao país o que o país necessitava, Blair pode ao menos alegar ter dado ao país muito do que o país desejava. É improvável que algum dia ele venha a ser lembrado como o grande primeiro-ministro que poderia ter sido. É quase certo, porém, que Blair será lembrado como um primeiro-ministro melhor do que é considerado hoje. (Tradução de Sergio Blum)