Título: Impositivo e inoperante
Autor: Tavolari, Marcos
Fonte: Valor Econômico, 11/05/2007, Opinião, p. A12

O último processo eleitoral trouxe à baila o adormecido tema da privatização e do tamanho do Estado, reaquecendo as discussões sobre que funções devem ser reservadas à intervenção estatal direta - como segurança, saúde e educação básica; quais são aquelas no qual ele deve intervir indiretamente - por regulação e/ou por instrumento de concessão, permissão ou autorização, visto que o serviço público, em si, não é passível de privatização na sua atual essência constitucional, ao contrário do que muitos pensam; e de quais deve retirar-se, como em determinadas atividades empresariais, nos casos clássicos da privatização de ativos estatais. Nas urnas ganhou o discurso mais intervencionista e menos subsidiário, ainda que distante de ser estatizante como tem ocorrido nos países vizinhos.

Neste contexto, observamos que a principal peculiaridade da atividade e do poder do Estado é basear-se na exclusividade do uso da coerção, ou seja, da força física, dentro dos limites que lhe são delegados politicamente pela sociedade e juridicamente condicionados. Tal delegação insere-se na própria fundamentação hobbesiana clássica para existência do Estado, como ente "necessário" garantidor da segurança e do bem estar da coletividade. Assim, mesmo aqueles que preconizam um modelo de Estado mínimo, são uníssonos em reservar o papel da segurança para o Estado como garantidor da propriedade e da vida humana.

Ocorre que em diversas áreas da região metropolitana do Rio de Janeiro gerou-se uma nova figura, a do "estado semi-ausente", ou seja, pretensamente presente de direito, impositivo, mas ausente de fato, inoperante. É também conhecido como "estado de abandono" ou "estado de usurpação", no qual o cidadão contribui cada vez mais pesadamente para manter o "Estado", mas não recebe contrapartida. O Estado lhe cobra e até usurpa bens, pois o cidadão não é contribuinte se não lhe há contrapartida social. Sequer é cidadão, pois pagar tributo ao Estado deve ser um ato de cidadania, não de usurpação. O ápice desse modelo sui generis, quase medieval, foi o progressivo processo de privatização da segurança e o abandono deste segmento à iniciativa privada, inclusive agentes estatais que passaram a cobrar pela "segurança".

Muito se discute sobre segurança pública no Rio, mas pouco se atenta para o pernicioso processo de privatização do setor e das suas nefastas conseqüências. Nos últimos 20 anos, o cidadão fluminense mudou seus hábitos em virtude da escalada da violência urbana. Paralelamente, ante a ineficiência das políticas públicas adotadas, surgiu uma verdadeira "economia da segurança", com cadeias produtivas próprias, que vão do fornecimento de dispositivos de segurança (vídeos, grades, alarmes) a carros blindados, agentes de segurança pessoais, vigilantes de ruas, seguros, guardadores de automóvel etc. Há um percentual expressivo da economia local girando em torno da segurança, seguindo o crescimento da economia que gira em torno da criminalidade, como no caso da complexa economia das drogas. O problema é que, mafiosamente, se imiscuíram e o medo passou a ser um bom negócio.

Um caso clássico, e perigoso, é o aumento descontrolado das empresas de "segurança particular", que acabam por ocupar um espaço que deveria ser do Estado. São em geral administradas por militares e agentes de segurança aposentados, que empregam, muitas vezes, militares e agentes de segurança da ativa. Pergunta-se: aos donos deste negócio, executores da política pública de segurança, há interesse na diminuição da violência ou da sensação do medo? É correto que agentes públicos, que recebem remuneração de origem pública para garantir a segurança, atuem privadamente neste setor?

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Outro exemplo análogo dá-se na proliferação, em diversas regiões da cidade (mais de 72 comunidades), de "milícias particulares" ou "polícias mineiras" - verdadeiros agrupamentos paramilitares mantidos e gerenciados por militares, policiais militares, civis e até por integrantes do Corpo de Bombeiros (que, no Brasil, é militar). Nasceram com o intuito de proteger comunidades dominadas por narcotraficantes, mas passaram a cobrar uma "taxa" pelo serviço prestado. Surgem evidências que praticam extorsão de comerciantes locais, controlam a venda de gás e o transporte alternativo, expulsam famílias e loteiam terras invadidas. Outros podem estar criando feudos eleitorais nas regiões "sob domínio", transformados em verdadeiros burgos medievais, com direito a muros, portões, símbolos pintados nas paredes e toque de recolher dos novos "donos do poder legal". Mas nada se faz, visto que impera uma impressão de falsa segurança do morador da localidade, que se sente protegido e já está acostumado a pagar (de diversas formas) pela "segurança", em razão da ausência pública no setor, a despeito da elevada carga tributária direta ou indireta cobrada pelo Estado. De novo, pergunta-se: ruim com o traficante, "menos pior" com o miliciano duplamente remunerado? Se foi tão fácil "tomar" comunidades de traficantes, para estabelecer novo poder privado, por que não fizeram isso quando investidos do poder estatal?

Nunca é demais lembrar que a máfia italiana nasceu do brigantaggio, milícias rurais que surgiram para lutar contra invasores e defender os interesses dos camponeses, mudaram de lado, passaram a prestar favores de segurança aos grandes latifundiários e cresceram a ponto de dominar econômica e politicamente as regiões, com exploração de jogos, extorsão, prostituição, contrabando, comércio de drogas, manipulações eleitorais, corrupção de agentes estatais e distorção de processos de concessões e licitações públicas. A privatização da segurança pública e a exploração econômica do medo, inexoravelmente, terminam em relações mafiosas.

A região metropolitana do Rio pode estar assistindo ao surgimento de um novo tipo de pluralismo juspolítico; não aquele originário das práticas sociais dos excluídos, mas um poder verdadeiramente paralelo. E, com espanto, vemos a apatia conivente ou conveniente dos representantes políticos que, maliciosamente, confundem subsidiaridade com abandono da relação público-privado. Por outro lado, socorrer-se da União, com a retórica do "ponham o Exército nas ruas", parece uma solução simplória e imediatista, que simboliza a falência da competência do próprio Estado federado.

O filósofo italiano Norberto Bobbio nos ensinou que "se o uso da força é a condição necessária do poder político, apenas o uso exclusivo deste poder lhe é também a condição suficiente".

Por fim, cabem duas perguntas: deve o cidadão continuar sujeitando-se à arrecadação tributária do Estado, se quem lhe presta até o mínimo serviço de segurança é um agente privado? Precisamos de um Estado impositivo e inoperante?

Marcos Tavolari é advogado e professor universitário.