Título: O marketing e a fé
Autor: Corrêa, Humberto
Fonte: Valor Econômico, 15/05/2007, Opinião, p. A12

A visita do Sumo Pontífice ao Brasil legitima uma reflexão sobre a redução proporcional do Catolicismo nas últimas três décadas. De acordo com o último Censo Demográfico de 2000, o catolicismo era a filiação religiosa de 73,8% da população brasileira. Trata-se de uma queda de mais de nove pontos percentuais se comparado ao patamar de 83% observado em 1991. O encolhimento do Catolicismo ocorreu, principalmente, em detrimento do avanço das igrejas neopentecostais que, no mesmo período, cresceram de 9% para 15,4% da adesão religiosa. Divulgado recentemente, um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou que o número absoluto de católicos permaneceu estável nos últimos três anos, apesar do contínuo avanço absoluto e proporcional dos pentecostais no mesmo período.

Recentemente, Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, declarou que a Igreja Católica não está alheia a esse movimento, mas alerta que a fé não pode se render à lógica de mercado que atualmente prevalece no comportamento humano. Sem contestar a supremacia da fé no divino sobre o mundano, uma análise fria do êxodo dos fiéis pode apontar alguns desacertos que o Catolicismo necessita enfrentar para manter a sua hegemonia.

O marketing, pensado como uma ferramenta de gestão, postula quatro grandes dimensões que abarcam praticamente a totalidade dos procedimentos necessários para gerir uma unidade de negócio. São elas: o produto, a sua promoção e distribuição, além do seu preço. E uma Igreja - não a fé - igualmente pode ter a sua atuação analisada sob esse prisma.

O "produto" de uma religião é o conjunto de dogmas e doutrinas que conduzirão o fiel à comunhão com Deus. Até certo ponto, essas regras podem ser flexibilizadas, não obstante seja inconteste que uma religião não conseguirá sobreviver por muito tempo se modificar freqüentemente os seus princípios. Por essa razão, o Catolicismo tende a se atualizar em correntes. A Renovação Carismática, por exemplo, busca uma nova abordagem para a evangelização, além da renovação de algumas práticas do misticismo católico. Já as Católicas pelo Direito de Decidir defendem pontos rechaçados pela religião. E, a despeito de perturbarem os setores mais conservadores da Igreja, as novas tendências cumprem o papel de oxigenar o Catolicismo, ao mesmo tempo em que não possuem o poder para descaracterizá-lo em seu núcleo duro.

Em verdade, as demandas por modificações não traduziriam inquietações para a Igreja Católica, caso não fosse ela uma doutrina milenar. Com efeito, se surgisse hoje, o Catolicismo estaria em maior sintonia com as demandas sociais contemporâneas. E é por essa mesma razão que uma nova igreja não precisa atualizar seus princípios, pois não há o que ser modernizado em algo recém-criado. Assim, em virtude do peso da sua tradição, o Catolicismo chega aos seus fiéis de uma forma holística, enquanto as igrejas protestantes possuem a liberdade - que praticam - para segmentar o atendimento do seu rebanho por problemas específicos. Os neopentecostais, por exemplo, costumam dedicar determinados dias da semana para tratar questões relacionadas com o amor, família, prosperidade etc. Em suma, formulam "produtos" sob medida para a demanda dos seus seguidores. Dom Odílio classifica esse tipo de atendimento como a lógica perversa "da praça da grande oferta, onde existem muitos produtos onde cada um escolhe, ao seu bel prazer, aquele que mais lhe agrada". Mas o que pode ser mais parecido com esse procedimento do que a urgência que aflige o homem do século XXI?

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Seguindo os pilares do marketing, a dimensão "promoção" emerge como o calcanhar-de-aquiles do Catolicismo. As igrejas pentecostais utilizam maciçamente os meios de comunicação para a divulgação das suas doutrinas. Algumas contam com aparatos midiáticos detentores de emissoras de televisão e rádio, jornal e, o mais importante, um exército combativo de fiéis. Com vistas a conquistarem novos adeptos, os pentecostais, ao contrário dos católicos, não perdem uma única oportunidade de tornar pública a sua fé e os preceitos das igrejas que freqüentam - comportamento rechaçado e considerado desagradável pelos não adeptos da religião proclamada.

Poder-se-ia pensar: a Igreja Católica também controla emissoras de televisão. Note-se, no entanto, que a principal TV pentecostal oferece um conteúdo não-religioso cingido por mensagens ecumênicas, enquanto o conteúdo da rede católica é monotônico e praticamente restrito as mensagens de teor religioso. Essa linha de atuação permite maior exposição das mensagens pentecostais para a população "não-praticante", do que as mensagens católicas.

A terceira dimensão é a "distribuição". Atualmente, qualquer aglomerado humano é rapidamente dotado com alguma igreja dita "evangélica" que, via de regra, ocupa uma edificação bastante modesta se comparada à maioria dos templos católicos. Em geral, os requisitos para o início das atividades são módicos, pois bastará um pequeno galpão para acolher os primeiros interessados. Com o tempo, o local ganha benfeitorias até adquirir ares de sítio religioso. E, assim, através de suas pequenas e prolíficas filiais, as grandes igrejas pentecostais conseguem rapidamente marcar presença nos pontos mais distantes do país. Nas áreas periféricas, onde grassa a violência e praticamente inexiste oportunidades viáveis de lazer ou espaços públicos de convivência, são essas igrejas que promovem a socialização das classes menos favorecidas. Em adição, enquanto o Catolicismo forma lentamente seus novos sacerdotes, os pentecostais o fazem com extremo dinamismo. Como resultado, o estabelecimento de novas igrejas católicas tornou-se um fenômeno raro, pois faltam padres até mesmo para as paróquias mais antigas.

Por fim, o marketing nos fala da dimensão "preço". A pesquisa da FGV supracitada revelou que os católicos doam menos para as suas igrejas do que os pentecostais. Estes vêem com maior nitidez os seus dízimos custearem atividades de socialização e lazer, tutoria espiritual, melhoria da igreja que freqüentam e, não raro, em assistência material.

Certamente, a Igreja Católica reconhece que o homem contemporâneo procura respostas imediatas para seus problemas e o arcebispo foi inequívoco ao afirmar que o Vaticano está refletindo sobre como responder às necessidades dos seus fiéis. Todavia, por sua longevidade, a Igreja Católica não consegue vencer o dilema de introduzir as mudanças que necessita implementar para estancar a perda da sua hegemonia sem ter que pagar o ônus de uma provável autodescaracterização.

Humberto Corrêa é especialista em Pesquisa de Mercado e Opinião Pública (UERJ), mestre em Estudos Populacionais pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE) e doutorando em Demografia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).