Título: Brasil acerta ao acumular reservas cambiais, diz FMI
Autor: Balthazar, Ricardo
Fonte: Valor Econômico, 15/05/2007, Especial, p. A14

O Brasil acerta ao acumular reservas cambiais para reduzir a vulnerabilidade do país a crises externas e conter a valorização do real, apesar dos custos crescentes dessa estratégia para os cofres do governo. A avaliação foi feita pelo novo economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), Simon Johnson.

"Acumular reservas sempre ajuda", disse Johnson, em entrevista ao Valor. "Não é o suficiente para proteger a economia contra todos os tipos de riscos, mas é bom." Ele acha que o país teria mais sucesso se não afrouxasse o controle sobre as contas públicas. "O Brasil está agindo de maneira sensata, mas seria encorajador se também continuasse fazendo progressos na área fiscal", disse o economista.

Johnson assumiu seu posto no FMI no fim de março. Ele chegou à instituição numa época difícil. Clientes tradicionais como o Brasil e a Argentina pagaram tudo que deviam ao Fundo e agora dispensam seus conselhos. Alguns, como a Venezuela, ameaçam sair da organização. Blocos regionais discutem iniciativas que podem reduzir sua influência na América Latina e na Ásia.

Com o mundo atravessando o quinto ano de um prolongado ciclo de expansão, é fácil entender tanto desinteresse. Mas Johnson acha que o FMI continua tendo um papel relevante a exercer, na exposição dos riscos que ameaçam acabar com a calmaria na economia global e nos esforços para convencer países como os Estados Unidos e a China a ajustar seus desequilíbrios.

"O Fundo estava acostumado a dizer às pessoas o que fazer", disse Johnson. "Agora nosso papel é mostrar os fatos, expor argumentos e convencer as pessoas." Sua atuação é sempre fonte de controvérsias. Nos últimos meses, economistas influentes criticaram o FMI por apresentar uma visão otimista demais do cenário econômico global, subestimando os riscos existentes.

Aos 44 anos de idade, Johnson dava aulas na escola de administração de empresas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) antes de ir para o Fundo. Ele trabalhou como consultor na década de 90, quando ajudou países como a Polônia e a Ucrânia a reformar suas economias depois do colapso do comunismo. Johnson recebeu o Valor em sua sala na sede do FMI, em Washington.

Valor: O Fundo está subestimando os riscos que atualmente ameaçam a economia mundial?

Simon Johnson: Não. Continuamos prevendo taxas elevadas de crescimento para os próximos dois anos e temos sido bem claros na apresentação dos riscos que podem desestabilizar esse quadro. Mas esses riscos não são maiores hoje do que há seis meses. Os preços do petróleo estavam extremamente altos em setembro do ano passado. O mercado imobiliário americano parecia muito pior do que hoje, e não sabíamos exatamente como iria evoluir. As pressões inflacionárias pareciam mais graves. Concluímos que os riscos diminuíram, mas isso não significa que eles deixaram de existir.

Valor: Os relatórios mais recentes do Fundo manifestam uma preocupação maior com os riscos no sistema financeiro. Por quê?

Johnson: A volatilidade dos mercados financeiros anda muito baixa e numa situação assim você teme que as pessoas estejam tomando muito risco. Mesmo investidores muito sofisticados podem fazer apostas arriscadas demais nesse ambiente. Quando há um episódio de volatilidade, como o que vimos no início do ano, com uma queda repentina das bolsas de valores e dos preços dos ativos, pessoas que se endividaram para fazer essas apostas podem perder a capacidade de pagar suas dívidas e isso pode prejudicar outros participantes do mercado. O lado bom é que tivemos um episódio sério neste ano e os mercados se recuperaram logo.

Valor: Novos instrumentos financeiros criados nos últimos anos têm ajudado muito a diluir esses riscos. Eles tornaram o sistema financeiro mais estável ou serviram apenas para disfarçar os riscos?

Johnson: Não sabemos. Os riscos estão certamente mais distribuídos. Hoje você pode dividir um empréstimo em vários pedaços e vendê-los a outras pessoas para diminuir seus riscos. Isso funciona. O que não sabemos é se há gente assumindo riscos excessivos, por exemplo concentrando suas apostas em mercados específicos. Muitas transações são feitas por indivíduos ou fundos pouco regulados. Não sabemos direito o que está ocorrendo e temos que observar o mercado com cuidado.

Valor: Essas inovações ajudaram o mercado de hipotecas a se expandir muito nos Estados Unidos, mas os problemas que o setor atravessa agora parecem mostrar que a situação fugiu ao controle.

Johnson: É sempre difícil encontrar o equilíbrio adequado entre regulação e inovação, para evitar que uma iniba a outra. O que aconteceu com as hipotecas foi útil para lembrar o que ocorre quando você estende muito crédito rápido demais. Mesmo pessoas inteligentes no setor privado foram pouco cuidadosas na concessão de crédito. O lado bom é que a crise ficou contida no segmento de alto risco do mercado imobiliário dos EUA e não afetou outras áreas.

Valor: Os governos deveriam reforçar a regulação do sistema financeiro ou uma intervenção desse tipo tornaria as coisas piores?

Johnson: É difícil dizer. O desenvolvimento desses mecanismos de diluição do risco foi algo muito construtivo. Várias crises ocorreram no passado porque os riscos estavam muito concentrados e agora esse tipo de problema é menos provável, graças às inovações no setor privado. Não vejo razões muito fortes para uma maior intervenção governamental. Estamos observando com cuidado o que acontece com os fundos de hedge e os investimentos de países que acumularam muitas reservas nos últimos anos, como a China, a Rússia e os produtores de petróleo.

Valor: Os mercados emergentes estão mais bem preparados para enfrentar uma crise desta vez?

Johnson: Em geral, sim. Um aspecto importante é que eles estão antecipando a instabilidade. Embora os indicadores de volatilidade estejam muito baixos, as pessoas que administram as economias emergentes não acham que o mundo tenha ficado subitamente mais estável. Eles pensam que a boa fase é temporária e que é preciso ser muito cuidadoso. Está todo mundo respeitando os limites de velocidade na estrada. Além disso, vários países acumularam reservas e essa proteção será muito útil se houver uma crise.

-------------------------------------------------------------------------------- Por muito tempo a América Latina não prestou atenção suficiente à necessidade de manter a estabilidade" --------------------------------------------------------------------------------

Valor: O Brasil e outros países que têm acumulado reservas também parecem empenhados em evitar a valorização de suas moedas e a perda de competitividade de suas empresas. Essa estratégia é apropriada ou também carrega riscos?

Johnson: Acumular reservas sempre ajuda. Não é o suficiente para proteger a economia contra todos os tipos de riscos, mas é bom. E também é muito importante evitar a valorização excessiva da moeda, que pode se transformar em outra fonte de vulnerabilidade. O Brasil está agindo de maneira sensata, mas seria encorajador se também continuasse fazendo progressos na área fiscal. O país melhorou muito nos últimos anos, mas ainda há muito a fazer na agenda de reformas e isso seria importante para diminuir riscos.

Valor: Por que o Brasil e outros países da América Latina não crescem como a China ou a Índia?

Johnson: Em grande parte por causa de uma idéia equivocada que eles tinham algumas décadas atrás sobre a melhor maneira de administrar a economia, num mundo que estava se tornando muito mais integrado. Por muito tempo a América Latina não prestou atenção suficiente à necessidade de manter a estabilidade macroeconômica. Houve muitos episódios de alta inflação na região, e muito poucos na Ásia. Os países asiáticos focaram mais no desenvolvimento de mercados para exportações. Na América Latina, a inflação e a sobrevalorização do câmbio tornou difícil a construção da base industrial. A Ásia não teve crises por muito tempo. Quando teve, na segunda metade da década de 90, o choque foi doloroso, mas a maioria dos países se recuperou rapidamente.

Valor: Também houve nos países asiáticos forte intervenção governamental na economia, câmbio fixo e medidas que não fazem parte do receituário adotado pelo FMI.

Johnson: Discordo. Evitar a valorização excessiva da moeda e estimular o desenvolvimento de exportações são medidas que sempre tiveram apoio do FMI. Na área fiscal, a China em geral tem sido muito ortodoxa. A definição do regime cambial mais adequado para cada país em cada momento depende de várias circunstâncias. No médio prazo, a moeda tende a se apreciar em países com grandes superávits em conta corrente, como a China. Por isso, achamos que eles deveriam ser mais flexíveis na maneira como administram a taxa de câmbio hoje, para ajudar no processo de ajuste que virá.

Valor: A economia global continua em expansão, apesar da desaceleração dos EUA. O mundo ficou menos dependente do que acontece com a economia americana?

Johnson: Há um descolamento entre as principais economias na atual fase do ciclo econômico. Mas isso não quer dizer que a mesma coisa ocorreria em outras situações. O deslocamento é muito positivo, porque evitou que os problemas no mercado imobiliário americano se espalhassem para o resto do mundo. E a continuidade da expansão mundial ajudará a economia americana a se recuperar. Mas isso não significa que uma crise mais séria nos EUA não teria repercussões nos demais países.

Valor: Há sinais de que os ganhos de produtividade que impulsionaram a economia americana nos últimos anos estão diminuindo. Esse fenômeno o preocupa?

Johnson: Desconfio que ele seja temporário. Alguns dados sugerem que isso está ocorrendo nos EUA, mas precisamos de mais informação para ter certeza. Acredito que o potencial de crescimento da produtividade americana permanece alto. Os indicadores nessa área são muito imperfeitos, porque não captam a inovação, a introdução de novos produtos, as melhorias de qualidade. Boa parte da riqueza produzida hoje em dia é feita de coisas que há vinte anos nem imaginávamos que um dia iríamos consumir, como computadores pessoais e o gravador digital que você usa. Essas coisas não são captadas pelas medidas tradicionais da produtividade. Em termos de potencial para o crescimento, a inovação na economia americana continua muito alta e outros países estão convergindo para o mesmo padrão.

Valor: O FMI tem alertado com freqüência para os riscos do aumento do protecionismo comercial no mundo. Por que temer isso?

Johnson: A prosperidade que o mundo experimenta há vários anos é em grande parte baseada na expansão do comércio entre os países. A maioria das pessoas ganhou muito com isso. Mas algumas foram realmente prejudicadas e por essa razão encontramos cada vez mais nos EUA, na Europa e em outras partes do mundo uma visão equivocada sobre o funcionamento da economia global e o papel da liberalização comercial. A economia global funciona como uma bicicleta. Você tem que continuar pedalando. Em outras palavras, você tem que continuar reduzindo barreiras comerciais, para continuar em cima da bicicleta.

Valor: O que pode ser feito?

Johnson: O que nos preocupa é que o processo de abertura do comércio global seja interrompido e os países voltem a criar entraves em vez de continuar reduzindo tarifas. Temos que pensar em outras maneiras de ajudar as pessoas que saíram perdendo com a abertura comercial. Elas podem não ser a maioria, mas foram prejudicadas e estão reclamando em voz alta. Isso tem que ser resolvido por políticas que ajudem essas pessoas a conseguir bons empregos e desenvolver novas habilidades. Essa questão foi negligenciada por muitos países e por isso cada vez mais gente está com medo de perder o emprego. Isso torna mais difícil sustentar o progresso da economia global.

Valor: Qual o papel do FMI num mundo sem crises financeiras?

Johnson: O mundo está sempre mudando e o Fundo também precisa mudar, e é o que está procurando fazer com cuidado. O FMI deverá ter daqui para frente um papel mais importante de monitoramento e análise. Nosso trabalho será explicar às pessoas quais são os problemas e persuadi-las a fazer mudanças na direção correta. O Fundo estava acostumado a dizer às pessoas o que fazer, e elas tinham que fazer para conseguir um empréstimo. Agora nosso papel é mostrar os fatos, expor argumentos e convencer as pessoas.

Valor: Muitos se decepcionaram com os resultados do processo de consultas multilaterais lançado pelo Fundo para discutir os atuais desequilíbrios da economia global.

Johnson: Foi a primeira vez que um grupo importante de países se juntou para discutir o problema e buscar uma maneira de conduzir a economia mundial numa rota mais sustentável. Os Estados Unidos não precisam zerar seu déficit em conta corrente e a China não precisa parar de acumular reservas.

Mas é preciso caminhar para uma situação mais equilibrada. Com o processo de consultas multilaterais, conseguimos definir um conjunto de políticas que os países envolvidos concordam em seguir para evitar que esses desequilíbrios fiquem grandes demais ou sofram um ajuste desordenado. Ninguém está forçando ninguém a fazer nada que não seja do seu interesse e o processo deu mais transparência às intenções dos governos desses países.