Título: Menina L, nunca mais
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Fonte: Correio Braziliense, 27/12/2010, Opinião, p. 12

Três anos depois de envergonhar um pouco mais o país ante o mundo civilizado, cinco delegados foram condenados semana passada pela Justiça do Pará. Eles são acusados de envolvimento no caso da menina L, como ficou conhecida repugnante demonstração de selvageria e desrespeito a um ser humano ocorrida em Abaetetuba, a 140km de Belém. Presa por pequenos furtos, a garota, que tinha apenas 15 anos, foi jogada numa cela com 30 homens. Foram 26 dias de torturas, ameaças de morte e violência sexual em troca de comida.

Relatos da época davam conta de que, além das autoridades policiais e judiciárias, muita gente na cidade sabia o que estava acontecendo naquela cela de horrores e degradação. Denúncia anônima levou o Ministério Público a intervir no caso que ganhou repercussão internacional. Foi quando a governadora do estado, Ana Júlia Carepa (PT), surpreendeu a todos ao declarar que ¿essa é uma prática lamentável que, infelizmente, já ocorre há algum tempo¿. Ela afastou os policiais diretamente envolvidos, mas não a preocupação das pessoas menos acostumadas à barbárie.

Todos sabiam das condições subumanas da maioria das cadeias e presídios não apenas do Pará. Mas daí a permitir que meninas fossem oferecidas à diversão dos presos, como no caso de Abaetetuba, vai uma distância impossível de calcular. Não menos alarmante foi ouvir da maior autoridade daquele estado que essa ¿prática¿ não era novidade para ela.

Desde então, restou uma dúvida: quantas ¿meninas L¿ há no Pará e nos milhares de presídios e cadeias espalhados por todo o território nacional? Nem a condenação dos delegados nem a aposentadoria compulsória (sem perda de vencimentos) da juíza de Abaetetuba, por determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), encerram o caso ou reduzem a gravidade do episódio. O saldo de Abaetetuba é negativo demais para a cidadania, a dignidade e o decoro nacionais.

Sabe-se que a ex-menina L voltou às ruas, aos furtos e se tornou viciada em crack, certamente levada pelas belas lições lhe deram os adultos de Abaetetuba. Mas nem ela nem as desumanas autoridades de sua cidade são casos isolados. A verdade é que temos vivido a ilusão de que é possível esconder do mundo a indignidade das masmorras em que se transformaram nossos depósitos humanos. O crime de negar a essa gente qualquer perspectiva de reinserção social não é menos leve do que o que eles cometeram e os levaram a essa miserável condição.

Agora que governo e sociedade parecem convencidos de que a segurança pública está acima de quizilas partidárias, é hora de estender essa compreensão à urgência de devolver à racionalidade e à decência a responsabilidade pública pela guarda e a recuperação do preso ou sentenciado. O propósito tem de ser o de devolvê-lo à cidadania, ao trabalho e à família ¿ valores que nada têm a ver com certa cadeia de Abaetetuba. Menina L, nunca mais.

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