Título: Sobre o licenciamento compulsório
Autor: Guimarães, Reinaldo e Penna, Gerson
Fonte: Valor Econômico, 18/05/2007, Opinião, p. A12

Na sexta-feira, 4 de maio, o presidente da República, decretou o licenciamento compulsório do efavirenz, medicamento contra o HIV utilizado pelo programa brasileiro de aids. O objetivo essencial do ato do presidente foi o de garantir a continuidade, com qualidade, desse programa e o bem-estar dos 180 mil cidadãos e cidadãs brasileiros que convivem com o vírus.

Desde então, a empresa detentora da patente do medicamento, algumas associações corporativas e a câmara que representa os interesses comerciais do país-sede daquela empresa no Brasil vêm levantando alguns argumentos contra o ato do presidente. Este artigo visa esclarecer a opinião pública.

O primeiro argumento fala da intransigência do Ministério da Saúde nas negociações para a redução do preço do efavirenz. Decididamente não procede. Entre novembro de 2006 e a data do decreto ocorreram nove reuniões visando à conciliação de interesses, sendo oito com as áreas temáticas específicas do Ministério da Saúde (MS), incluindo em quatro delas o seu primeiro escalão, e adicionalmente reunião do presidente da filial brasileira com os dois ministros, o da Saúde, José Gomes Temporão, e o do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Miguel Jorge.

Nas sete primeiras reuniões e mesmo após a reunião com os ministros, a posição da empresa foi a de conceder apenas 2% de abatimento sobre o último preço pago pelo MS (US$ 1,54 por comprimido de 600 mg). Apenas depois da publicação da Portaria 886/2007 do ministro Temporão, em 25 de abril, declarando o medicamento como de interesse público para o licenciamento, houve uma nova proposta reduzindo o preço em 30% (US$ 1,10 o mesmo comprimido). Na nona reunião o MS fez saber que a proposta ainda era insatisfatória face aos preços praticados pela empresa em alguns países em desenvolvimento (US$ 0,65). O MS possui extensa documentação sobre o processo, inclusive todas as atas das reuniões de negociação. Vale ainda lembrar que as negociações do MS com os diversos laboratórios produtores de medicamentos têm sido permanentes e sempre bem-sucedidas. Em algumas ocasiões, a iniciativa de propor redução de preços partiu do próprio fabricante, como um gesto de reconhecimento da excelência do programa brasileiro contra o HIV-AIDS.

O segundo argumento afirma que a quebra da patente é um ato de pirataria. Também não procede. A pirataria é um ato unilateral sem qualquer respaldo legal. O licenciamento compulsório é uma salvaguarda prevista no artigo 31 de Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) da Organização Mundial do Comércio. O decreto brasileiro está 100% respaldado pelo que rezam o acordo TRIPS e a lei brasileira de propriedade intelectual.

O terceiro argumento fala de um suposto ambiente de "insegurança jurídica" decorrente do ato do presidente. Esse ambiente afugentaria investimentos no Brasil por parte da indústria farmacêutica internacional. Não é razoável. Em primeiro lugar, porque o ambiente econômico atual não sustenta esse temor. Há semanas uma empresa dinamarquesa, Novo Nordisk, inaugurou sua nova planta de envasamento de insulina no Brasil, em Montes Claros (MG), com um investimento de mais de US$ 200 milhões. O BNDES tem oferecido recursos crescentes para o financiamento de infra-estrutura, em particular nos setores prioritários da política industrial, entre os quais o farmacêutico e farmoquímico. Mas o temor também não se sustenta quando se sabe que o mercado brasileiro no setor farmacêutico não é nada desprezível, valendo hoje cerca de US$ 10 bilhões. Para não mencionar a estabilidade política do país, que racionalidade empresarial sustentaria a decisão de abandonar um mercado desse porte numa conjuntura econômica tão favorável? Países como o Canadá e a Itália já realizaram licenciamentos compulsórios, isso não gerou insegurança jurídica e não houve redução de investimentos em conseqüência delas.

-------------------------------------------------------------------------------- Governo brasileiro reivindica participação maior de líderes mundiais em tecnologia na geração de conhecimento no Brasil --------------------------------------------------------------------------------

O quarto argumento sugere que as empresas farmacêuticas serão desestimuladas a realizar atividades de pesquisa no Brasil. Seria, de fato, muito negativo se isto acontecesse, mas de qualquer modo vale a pena quantificar e qualificar a pesquisa que o setor farmacêutico multinacional realiza entre nós. Segundo suas próprias fontes, o dispêndio mundial com pesquisa e desenvolvimento (P&D) realizado pela empresa detentora da patente do efavirenz está acima de 20% de seu faturamento. No entanto, os gastos da filial brasileira com P&D em relação ao faturamento no Brasil ficam abaixo de 1%.

A maior parte da atividade de pesquisa realizada pela empresa no Brasil é de pesquisa clínica, importante sem dúvida, mas pobre em termos de potencial de criação de conhecimento. Em linhas gerais, são protocolos prontos e fechados desenvolvidos na matriz da empresa e os dados coletados são analisados na sua totalidade por pesquisadores na matriz. Em outras palavras, a principal ênfase da pesquisa patrocinada pela indústria farmacêutica no Brasil é a de remunerar pesquisadores para captar pacientes nacionais para testar drogas desenvolvidas na matriz das patrocinadoras.

O governo brasileiro e a comunidade científico-tecnológica há muito tempo reivindicam uma participação maior dessas empresas líderes mundiais em tecnologia na geração de conhecimento no Brasil. Conhecimento dirigido aos objetivos empresariais, por certo, mas que pudessem capacitar o nosso país em alguns campos essenciais onde ainda temos lacunas importantes como, por exemplo, a toxicologia e a química médica. Cabe mencionar ainda a possibilidade da construção de parcerias equilibradas para a identificação de novas moléculas bioativas oriundas da rica biodiversidade brasileira.

Para tanto, será necessária uma visão mais aberta e cooperativa, visando empreendimentos conjuntos entre as empresas e os nossos institutos de pesquisa e universidades. O fato é que em outros setores industriais essas iniciativas têm prosperado mais do que no setor farmacêutico.

O quinto argumento é que a economia decorrente do licenciamento compulsório é pequena. O fato é que, com o licenciamento compulsório do efavirenz, cada comprimido - adquirido de laboratórios indianos pré-qualificados pela Organização Mundial da Saúde - custará entre US$ 0,44 e US$ 0,46, contra o preço unitário de US$ 1,10 apresentado na última proposta da detentora da patente. Isso significa que até 2012, ano da expiração da patente, a economia será de cerca de US$ 166 milhões, que serão revertidos para tratar pacientes com co-infecção, por exemplo HIV e Hepatites.

Por ocasião da assinatura do decreto, o presidente da República reafirmou seus compromissos com a saúde da população brasileira. Entendemos que as empresas farmacêuticas instaladas no Brasil têm um papel a cumprir nesse compromisso e o MS espera que o clima de entendimento que tem prevalecido na imensa maioria dos casos continue a ocorrer.

Reinaldo Guimarães, médico, é secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde.

Gerson Penna é secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.