Título: Os legados doPelé da política
Autor: Rothenburg, Denise
Fonte: Correio Braziliense, 26/12/2010, Política, p. 2

DE LULA PARA DILMA Série de reportagens com início hoje mostra acertos e equívocos dos oito anos da gestão Lula. Textos trazem um diagnóstico das mudanças no período e descortinam o Brasil que Dilma herdará em 1º de janeiro

Quando Fernando Henrique Cardoso entregou a faixa presidencial ao torneiro mecânico Luiz Inácio Lula da Silva, nem os petistas que sonhavam alto imaginavam ver o presidente de honra do partido, depois de três segundos lugares em disputas presidenciais, deixar o gabinete principal do Palácio do Planalto com uma popularidade na casa dos 80%. Nem o próprio Lula previa que, ao fim de oito anos, seria ele o primeiro a guindar uma mulher à Presidência. Hoje, entretanto, Lula está ciente da sua posição, ao ponto de se comparar a Pelé, conforme comentou recentemente a um amigo: ¿Quero me aposentar que nem o Pelé. Por cima. Não vou ficar jogando em time de segunda divisão, perdendo o apoio¿. Sinal de que, quando pendurar as chuteiras, será para valer. Isso não quer dizer, contudo, que seja em 1º de janeiro, ao passar a faixa a Dilma Rousseff.

Os petistas têm tanto orgulho do governo de Lula que já falam de sua volta ao poder em 2015, antes mesmo de degustar a gestão Dilma. ¿Lula é nosso Pelé. Ninguém deixa de convocar um Pelé para a Seleção porque ele tem 31 ou 32 anos, ou para abrir espaço para surgir um novo Pelé, até porque isso não é assim. Principalmente se o governo Dilma não tiver problema é que Lula volta. Temos um Pelé em pleno vigor, em plena posição e com ótima saúde. Quem quiser disputar a Presidência em 2014, é bom pensar nisso. Acredito que Lula será convocado inclusive pela própria Dilma¿, afirma o senador eleito, Jorge Vianna.

Lula não chegou ao primeiro lugar no pódio à toa. De hoje ao dia 31, o Correio apresentará uma série de reportagens com erros e acertos do governo em várias áreas e os desafios que esperam sua sucessora. A chave-mestra do sucesso, segundo os aliados, está no fato de o presidente não ter seguido, logo na chegada, o projeto do PT na área econômica e de ter investido alto nos programas sociais ¿ onde o carro-chefe foi o Bolsa Família. Eleito, Lula teve a audácia de convidar um deputado recém-eleito pelo PSDB para comandar o Banco Central. E, talvez por ironia, Henrique Meirelles, ex-presidente do Bank Boston, foi um dos poucos ministros que permaneceu oito anos no cargo. ¿Lula tem que rezar uma ave-maria para o Patrus e outra para o Meirelles todos os dias¿, comenta o deputado Virgílio Guimarães (PT-MG).

A chegada de Patrus ocorreu num dos momentos mais difíceis para Lula. Depois de um ano sem ver deslanchar o programa de combate à fome, que queria transformar em carro-chefe da gestão, Lula foi obrigado a demitir dois amigos: José Graziano, primeiro ministro responsável pelo Fome Zero, e Benedita da Silva, então ministra da Assistência Social. Por isso, Lula disse a Dilma num jantar: ¿Não convide ninguém que não possa demitir. É horrível¿. As funções foram absorvidas pelo Ministério do Desenvolvimento Social.

Enroscos Resolvida a economia e com a casa arrumada na área social, Lula, entretanto, não conseguiu naquele ano de 2004 acabar com a guerra fria entre o ministro da Casa Civil, José Dirceu, e o da Fazenda, Antonio Palocci ¿ uma briga dissimulada que atrapalhava o governo em várias frentes e crescia a cada dia, ao ponto de o próprio presidente reclamar a alguns mais próximos por ter que desperdiçar energia para aplacar disputas. Por ironia, no ano seguinte, o episódio que mais maltratou o Partido dos Trabalhadores em sua história, o escândalo do mensalão, fez dissipar a disputa no governo e reorganizar a política e o próprio PT. Saíram de cena todos os que comandavam o partido ¿ Dirceu; João Paulo Cunha, que presidiu a Câmara; Sílvio Pereira, secretário do PT; Delubio Soares, tesoureiro; Professor Luizinho, líder do governo na Câmara; entre outros. Palocci caiu em seguida, enroscado na quebra de sigilo do caseiro Francenildo. Só voltou à ribalta quando inocentado pelo Supremo Tribunal Federal.

Com o mensalão, Lula assumiu pessoalmente a coordenação política do governo. Com a fundação do projeto social consolidada, usou o prestígio popular para aplacar a força da oposição e os cargos para atrair aliados. Sem os pesos pesados do PT, estendeu ao PMDB o tapete vermelho que recolhera em dezembro de 2002, quando desfez o acordo desenhado por Dirceu com o então presidente do partido, Michel Temer. Tirou Miro Teixeira (PDT) das Comunicações para entregar ao PMDB. A vaga de Minas e Energia, aberta pela saída de Dilma para a Casa Civil, terminou nas mãos dos peemedebistas em 2007. O PT perdeu ainda a Saúde e, quando Ciro Gomes saiu para concorrer a um mandato de deputado federal, o PSB perdeu a Integração Nacional, que seria ocupada pelo deputado Geddel Vieira Lima (PMDB-BA). ¿A meritocracia acabou¿, diz o presidente do PSDB, Sérgio Guerra.

O PT, entretanto, voltou à Articulação Política com Jaques Wagner no lugar de Aldo Rebelo (PCdoB-SP), que viria depois a assumir a Presidência da Câmara. Os percalços no campo político na segunda metade do primeiro mandato, quando viu o partido tonto na Câmara com dois candidatos derrotados para presidente da Casa, fez a nova cúpula petista se aproximar do PMDB. No fim de 2006, Lula reeleito, os dois partidos se uniram para fazer de Arlindo Chinaglia presidente da Câmara. Vitoriosa, a parceria prosseguiu ao ponto de fazer de Temer o candidato a vice de Dilma. ¿Lula deixa para Dilma uma base política ampla. Resta saber se ela conseguirá manter assim¿, comentam reservadamente os próprios petistas.

Gramado Dilma assume com alguns desafios na política (veja quadro), entre eles o de organizar a base para eleger um presidente da Câmara que ela acreditava fora do páreo. E ainda tentar recuperar a energia desperdiçada nos percalços da formação de um governo que começará com diversos personagens sob fogo cerrado. Para isso, contará com a ajuda do atual presidente, que sai do 3º andar do Planalto, mas não da cena política. O que deixou Lula mais frustrado nesses oito anos não foi o fracasso da reforma política ou tributária. O que o deixa chateado mesmo é o fato de não ter deslanchado os tais territórios da cidadania em todos os bolsões de pobreza. Se Dilma não conseguir esse feito ou se desencantar com o intrincado mundo da política com o qual aprendeu a lidar na campanha, o ¿Pelé do PT¿estará à beira do gramado.

DESAFIOS HERDADOS

Presidência da Câmara O deputado Marco Maia (PT-RS) não era o nome preferido de seu grupo político dentro do partido. O Construindo um Novo Brasil preferia Cândido Vaccarezza. O governo terá que agir para evitar maiores dissidências

Jogo de cintura com aliados O problema não será a oposição, que vem em menor número. O desafio será administrar os pedidos dos aliados, que se movimentam em busca de um lugar ao sol nas estatais.

Pauta da Casa Em fevereiro, quando o Congresso retomar os trabalhos, Dilma precisará ter a base política disposta a barrar os pedidos de aumento de várias categorias.

STF A escolha do 11º ministro do STF terá que ser feita com cuidado, uma vez que há vários assuntos pendentes e houve empates em votações importantes, como a da Ficha Limpa.

Reformas política e tributária Desta vez, o próprio Lula diz que estará empenhado em negociar uma reforma política para fortalecimento dos partidos. Com a tributária, formam as duas que sempre são negociadas, mas nunca concluídas.