Título: Eficiência, avanço e concentração, os legados do etanol
Autor: Lopes, Fernando
Fonte: Valor Econômico, 21/05/2007, Agronegócios, p. B12

O agronegócio brasileiro está de volta ao trilho do crescimento. Puxado por uma locomotiva agora movida a álcool e com perspectivas de aumento da demanda global para a produção de energia e alimentos, o setor tem pela frente, segundo especialistas ouvidos pelo Valor, uma oportunidade valiosa de romper de vez com um passado marcado por administrações familiares e pouco transparentes, crises financeiras e rolagem de dívidas, e consolidar um processo de fortalecimento que ganhou fôlego principalmente após o fim da paridade entre real e dólar, em 1999.

Em um ambiente onde gestão e investidores (nacionais e estrangeiros) profissionais buscam conferir uma nova dinâmica, colaboram para alavancar as vantagens do país e transformá-lo no grande fornecedor de produtos agropecuários do mundo neste século o potencial de expansão da produção, a produtividade das principais cadeias e preços atraentes em mercados internacionais com forte presença brasileira - como suco de laranja, soja, etanol e carnes.

"É uma nova era para o agronegócio brasileiro", diz Marcos Fava Neves, coordenador do Programa de Estudos dos Negócios do Sistema Agroindustrial da Universidade de São Paulo (Pensa/USP). Em sua visão, a atual valorização das terras em diversas regiões do Brasil em decorrência da expansão dos canaviais exige o melhor uso possível desse ativo, com uma quase obrigatória elevação de investimentos em tecnologia e tratos culturais. E, para ele, este não é apenas o caminho para a área sucroalcooleira, mas também para pecuária, laranja, grãos e outras culturas que terão que se modernizar se quiserem resistir à "febre" do etanol.

No país, há cerca de 90 novas usinas sucroalcooleiras em fase de instalação e quase 200 em estudos - destas, metade com participação de investidores estrangeiros -, conforme a Dedini Indústrias de Base, que fornece equipamentos para quase todos os projetos. Nas contas da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), apenas as usinas que estão sendo instaladas e entrarão em operação até 2009 reúnem aportes de US$ 17 bilhões.

Com isso, observa Guilherme Dias, professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA/USP), mais 1 milhão de hectares de canaviais estão prestes a se unir aos mais de 6 milhões em produção no país e mesmo as mais ambiciosas previsões quanto ao futuro da demanda por etanol não parecem assustá-lo. Segundo a Unica, na safra 2006/07 foram produzidos no Brasil 17,7 bilhões de litros de álcool. Do total, 14 bilhões foram consumidos internamente e 3,7 bilhões foram exportados, sobretudo para os EUA.

Fabio Silveira, da RC Consultores, projeta que a demanda doméstica, movida pelos carros flex fuel, poderá atingir 28 bilhões de litros em 2015, e que até lá o Brasil contará com um excedente exportável de pelo menos 5 bilhões de litros. Muitos crêem que o excedente poderá ser maior, mas para este volume a demanda é incerta, apesar do compromisso do presidente George Bush de reduzir em 20% o uso de gasolina nos EUA até 2017, que deflagrou aportes bilionários também naquele país. Se cumprida a meta, serão necessários 132,2 bilhões de litros de combustíveis alternativos adicionais, a maior parte de etanol.

"Essa previsão não é factível. É quase tão boçal quanto a invasão do Iraque, por suas implicações até mesmo na oferta de alimentos. Mas apenas o mercado interno é capaz de sustentar o avanço do segmento sucroalcooleiro por cinco ou sete anos. Não teremos 1 milhão de hectares novos por ano, mas o suficiente para dobrar a oferta de álcool", diz Guilherme Dias. Segundo ele, esse "colchão" doméstico dará suporte enquanto a demanda externa por etanol ganha musculatura. Mas, para que isso aconteça, é vital a participação de outros fornecedores, como Índia, Austrália e Caribe, para conferir segurança de oferta a potenciais importadores, como o Japão.

José Eli da Veiga, professor titular e coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental do departamento de Economia da FEA, pondera que outras soluções para substituir fontes energéticas como petróleo, gás e carvão (hidrogênio, por exemplo) estão sendo pesquisadas, mas que a "janela de oportunidade" que se abriu para o Brasil deverá durar de 20 a 30 anos. Alexandre Mendonça de Barros, do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV) concorda que o horizonte de longo prazo é "fantástico" para o álcool, mas diz que há obstáculos para o próximo biênio.

"Com o dólar por volta de R$ 2, para produzir açúcar, cujas cotações internacionais estão em baixa, as usinas estão no limite. Existe a possibilidade de sobrar álcool no curto prazo". No momento, afirma, a oferta doméstica cresce mais rapidamente que a demanda e é importante que o Brasil encontre opções de escoamento. Mendonça de Barros lembra que há negociações para que os EUA abram uma cota de importação de 3 bilhões de litros de etanol para o Brasil. "Isso resolveria, já que a tarifa americana que onera a exportação brasileira [US$ 0,54 por galão] não cairá antes de 2009.

Independentemente de eventuais obstáculos no curto prazo, é quase consenso que a cana, puxada pelo álcool, tem todas as condições de se tornar a cultura com maior renda agrícola ("da porteira para dentro") do país nos próximos anos. Em 2007, segundo o Ministério da Agricultura, a renda dos canaviais deverá atingir R$ 21,528 bilhões, ou 18,9% do total esperado para os 20 principais produtos agrícolas brasileiros.

Isso não significará, segundo os especialistas, uma "monoculturização". Pelo contrário. Carro-chefe do campo há décadas, a soja tem receita agrícola prevista em R$ 26,453 bilhões (23,2% do total) neste ano, e com as perspectivas abertas pelo maior plantio de milho nos EUA para a produção de combustível a tendência também é de avanço. A expectativa de uso crescente de biodiesel produzido a partir de soja anima o segmento, mas o expressivo nível de endividamento dos produtores, sobretudo do Mato Grosso, preocupa e já motiva lobbies por rolagens.

Outro que voltou a ganhar espaço é o milho, motivado pelo aumento dos embarques após a redução do excedente exportável americano. Em 2007, a receita agrícola do grão no Brasil deverá alcançar R$ 17,073 bilhões (15% do total). "A cana vai crescer, mas como há outras cadeias com grande potencial, inclusive a de carne bovina, teremos mais diversificação", afirma Fava Neves, do Pensa. Em 2003, com a explosão dos preços internacionais da soja, o grão representou mais de 30% da receita das 20 principais lavouras, dependência que era encarada com temor.

A diversificação também chega à balança do setor. De maio de 2006 a abril de 2007, as exportações do agronegócio nacional somaram o recorde de US$ 52,695 bilhões, conforme o Ministério da Agricultura, 18,2% mais que no ano-móvel anterior. O complexo sucroalcooleiro representou US$ 8,376 bilhões e perdeu para soja (US$ 9,599 bilhões) e carnes (US$ 9,564 bilhões).

É por conta desse perfil exportador, aprofundado pela guinada cambial de 1999, que o dólar abaixo de R$ 2 é apontado, ao lado dos gargalos logísticos, como uma das principais travas para o amadurecimento desse ciclo de fortalecimento puxado pela cana. Mas, mesmo com perda de competitividade num momento de alta de custos de insumos importados (em percentuais superiores ao da queda do dólar), a visão geral é que o fortalecimento e a profissionalização do campo prevalecerão.

Mário Otávio Batalha, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Agropecuárias (Gepai) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), lembra que, por conta dessa profissionalização, alguns segmentos poderão carecer de mão-de-obra especializada no curto prazo. "Há novos cursos voltados para o setor, mas as usinas terão problemas. Mesmo os grupos familiares já são profissionais em sua maioria, mas as exigências estão aumentando. Há empresas abrindo o capital e novos players, tão ou mais profissionais, estão entrando. A maior procura tem sido por profissionais que entendem de mercado e sistemas agroindustriais".

Nessa rota, conclui Fava Neves, a concentração entre agroindústrias e produtores tende a se intensificar. E nesse ponto a citricultura paulista é emblemática. Pelas difíceis relações entre as indústrias (são apenas quatro grandes) e produtores e em função dos maiores investimentos também motivados pelo avanço de doenças nos pomares, o número de grandes citricultores (os mais técnicos e produtivos) já caiu de 23 mil, em 1995, para 7 mil em 2006. E deve cair mais.