Título: "Lei trabalhista tem riqueza de detalhes"
Autor: Galvão, Arnaldo
Fonte: Valor Econômico, 29/12/2006, Especial, p. A16

Principal responsável pelo aumento do salário mínimo para R$ 380, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, reconhece que a decisão "sacrificará" o orçamento de 2007, na medida em que elevará a despesa do INSS em R$ 6 bilhões no próximo ano. Nesta entrevista ao Valor, em que mostra desenvoltura ao falar de temas variados e confirma que é, neste momento, um dos ministros mais fortes e mais afinados com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Marinho quer discutir a Justiça do Trabalho, aceita negociar o abono de férias mas diz que o FGTS não será mexido. "Esqueçam", decreta.

O ministro, um ex-sindicalista que comanda a Pasta do Trabalho há um ano e meio, comemora a adoção de uma regra permanente de correção do salário mínimo e diz que é uma "mentira deslavada" a informação, originada no Ministério da Fazenda, de que a elevação do mínimo retirará R$ 4 bilhões do pacote de desoneração tributária em gestação no governo. Seu argumento é o de que, na proposta orçamentária enviada pelo governo ao Congresso, já estava contemplado o aumento do mínimo de R$ 350 para R$ 375. Portanto, observa ele, o impacto sobre as contas da Previdência Social se refere apenas à diferença de cinco reais negociada por ele com as centrais sindicais.

"O cálculo desse impacto é de R$ 1,1 bilhão e não de R$ 4 bilhões", diz ele, considerando nesse valor o efeito da correção de 4,5%, também acertada com as centrais sindicais, nos valores da tabela do Imposto de Renda. "O presidente Lula e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, concordaram em sacrificar um pouco 2007 para ter uma garantia no decorrer do mandato."

Na definição do novo salário mínimo, Marinho mostrou que tem mais prestígio no Palácio do Planalto do que o ministro da Fazenda, que defendeu um reajuste bem menor - para R$ 367. No núcleo do governo, o que se diz é que o presidente considera o salário mínimo um "símbolo" para as centrais sindicais, que, com a estabilização da economia, perderam o poder que tinham no passado, quando o próprio Lula era sindicalista. Daí, o governo ter concordado, desde que Marinho assumiu o ministério, em negociar com as centrais antes de fixar o mínimo.

Na entrevista, Marinho deixa clara a importância do tema para os sindicatos. "Quando assumi o ministério, comentei com alguns companheiros que, se conseguisse consolidar uma política para o salário mínimo, estaria satisfeito, com a missão cumprida", conta.

O ministro diz que "não passa de preconceito" atribuir a sindicalistas os males e os desvios de conduta do governo Lula no primeiro mandato. Citando dois ex-ministros acusados de envolvimento em irregularidades, ele alega que Luiz Gushiken deixou o sindicalismo nos anos 80 e que Ricardo Berzoini está no terceiro mandato como deputado. Ele reclama do questionamento feito à competência técnica de sindicalistas nomeados para cargos importantes na gestão Lula. "Nunca ouvi questionamento sobre a mulher do senador Albano Franco quando ela foi indicada à presidência do Conselho do Sesi sem conhecer nada do assunto."

Marinho diz que não sabe se continuará ministro no segundo mandato de Lula, mas, demonstrando saber de decisões que o presidente jura não ter tomado ainda, avisa que Francisco Dornelles, senador eleito pelo Rio de Janeiro e ministro do Trabalho na gestão FHC, cotado agora para assumir uma Pasta no governo petista na cota do PP, não será nomeado para o seu lugar. "Descarto totalmente essa hipótese. O presidente, se mudar, vai procurar uma novidade e não o passado", afirma.

Valor: O pacote de estímulo ao crescimento está emperrado por que o aumento do salário mínimo diminuiu a capacidade de desoneração dos investimentos? O ministro Furlan teria ficado particularmente agastado?

Luiz Marinho: Não é verdade. Todo mundo fica bravo numa mesa de negociação, mas acho ridículo esse tipo de reclamação de um ou de outro. Há um orçamento e o salário mínimo e a correção da tabela do Imposto de Renda são negociados. É evidente que o governo tem de esperar isso para ver o que pode ser feito.

Valor: Existem cálculos no Ministério da Fazenda de que o aumento do mínimo tirou de R$ 3,5 a R$ 4 bilhões do pacote. É isso?

Marinho: O acordo do salário mínimo não tirou R$ 4 bilhões do pacote. Isso é uma mentira deslavada. Os números que integraram a proposta orçamentária enviada ao Congresso já eram de um mínimo de R$ 375. E o governo acenou com uma correção de 3% na tabela do Imposto de Renda. Portanto, a diferença que deve ser calculada é entre esses números e os do acordo fechado com as centrais sindicais. O valor do salário mínimo foi de R$ 375 para R$ 380 e a correção mudou de 3% para 4,5%. O cálculo desse impacto é de R$ 1,1 bilhão e não R$ 4 bilhões. A recuperação do salário mínimo é um compromisso de governo e não estamos olhando só para 2007. O acordo da política permanente do salário mínimo, com a previsibilidade alcançada, convenceu o governo. O presidente Lula e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, concordaram em sacrificar um pouco 2007 para ter uma garantia no decorrer do mandato. Em 2008, o aumento do salário mínimo terá como base a inflação de 2007 mais a variação do PIB em 2006. O reajuste de 2008 será menor que o de 2007. Olhamos para o mandato inteiro e não só para o ano que vem. Os investimentos para que o PIB cresça 5% não miram somente 2007.

Valor: Por que haverá sacrifício em 2007?

Marinho: Pelo aspecto orçamentário. Estamos dando 5,4% de ganho real no salário mínimo em 2007. Em 2008, o aumento real deve ficar em 3%. Esses 5,4% foram dados com um PIB aumentando 3%.

Valor: No pacote já está definido o fundo de investimento em infra-estrutura com recursos do FGTS e também os estímulos à habitação?

Marinho: Há definição sobre o fundo de infra-estrutura, mas o tema da habitação ainda está em debate porque falamos dos 10% adicionais da multa nas rescisões dos contratos de trabalho. A sugestão do Ministério da Fazenda de usar esses recursos extras da multa do FGTS para esse fim ainda está aberta. Vamos acabar com esse adicional, mas não definimos quando isso vai ocorrer. Se for mais à frente, vamos estimular a habitação de baixa renda com esse dinheiro.

Valor: A discussão sobre a desoneração da folha de pagamento das empresas está evoluindo? O sr. já comentou que é preciso retirar os penduricalhos - contribuições ao Sistema S e à Previdência, principalmente - para estimular as empresas que geram mais empregos.

Marinho: Está travada. Vamos ter de enfrentar esse debate, deslocando a tributação da folha para o faturamento das empresas. Parte dos empresários não quer isso.

Valor: Com a recuperação do salário mínimo e a sua política permanente o governo enfrenta diferentes pressões. O que está sendo negociado em troca? Os empresários podem esperar uma flexibilização da lei trabalhista ou a desoneração da folha de pagamento?

Marinho: O que precisamos é aprofundar o debate sobre as reformas trabalhista e sindical. Sem acordo entre trabalhadores e empresários esse processo não anda no Congresso. Temos de aumentar a responsabilidade das negociações entre essas partes, diminuindo o papel da Justiça do Trabalho que é uma interferência estatal. Os empresários querem mudar a lei trabalhista porque há uma grande proteção individual, o que é verdade. Mas há falta de proteção coletiva e temos de criar esses mecanismos. Dizem que o negociado entre capital e trabalho tem de prevalecer sobre a lei. Não é bem assim. A lei é máxima, mas não pode impedir que as partes negociem condições melhores que as previstas. A lógica é a de ampliar os direitos.

Valor: O sr. pode citar exemplos?

Marinho: A lei é rígida quando estabelece todas as condições de concessão de férias, mas não precisa dessa riqueza de detalhes. A lei deve garantir férias de 30 dias com o acréscimo de um terço, mas a forma de gozá-las pode ser definida nos acordos coletivos. No nosso governo não faremos debate para tirar direitos dos trabalhadores, como férias, décimo terceiro e FGTS. Esqueçam. Não vamos discutir e os empresários nem vêm pedindo esse tipo de coisa. Temos de modernizar a lei, adaptando-a para as condições atuais. A reforma sindical tem de trazer as proteções coletivas para que, a partir delas, as partes possam deixar de apelar ao Judiciário. Mas esse processo ainda está cru.

Valor: Qual é a grande prioridade do segundo mandato ?

Marinho: O presidente tem determinado que o segundo mandato deve produzir mais que o primeiro porque as condições são melhores. Assumimos o país com indicadores econômicos infinitamente piores que os de agora. O Brasil tem o grande desafio de crescer mais que nos últimos 30 anos. Claro que tem de ser sustentado, pelo menos, por uma década. Para isso, é preciso investir mais e alavancar a capacidade de infra-estrutura. Também temos de aumentar o consumo, o que exige mais capacidade de produção. Esse é o principal desafio. No âmbito do Ministério do Trabalho, o que se coloca é a necessidade de uma qualificação profissional em larga escala. O salário mínimo é uma questão resolvida e tem previsibilidade até a próxima década. Portanto, é prioritário dar escala à qualificação profissional, atraindo a juventude que está sem oportunidade. Isso exige uma atuação conjunta com o Ministério da Educação.

Valor: Quais as ações previstas?

Marinho: Há um processo normal de qualificação por meio das escolas técnicas e das entidades de aprendizagem do Sistema S. O governo também tem incrementado as parcerias com foco no setor econômico e nas demandas regionais do mercado. Por exemplo, a indústria naval estava destruída e o nosso governo recuperou o setor. Temos em funcionamento um plano de qualificação para esses profissionais. Também temos apoiado a formação profissional nas indústrias aeronáutica e do software. O mesmo ocorre com as atividades ligadas aos segmentos de papel/celulose e petróleo.

Valor: Quais são os investimentos que serão feitos em qualificação profissional?

Marinho: Muitas vezes combinamos o orçamento do ministério com verbas de Estados, municípios e do setor privado. No interior de São Paulo, temos as instalações da Embraer em Gavião Peixoto. A área de manutenção da TAM está em São Carlos. Nesses lugares, as empresas partilham os custos da qualificação. No Paraná e na Bahia, o mesmo acontece com as empresas de papel e celulose. Na ausência de um orçamento que dê conta dessa demanda, buscamos a criatividade para trazer investimento privado. A Petrobras vai qualificar 78 mil profissionais em todo o país.

Valor: O sr. já tem sinal do presidente de que fica no Ministério do Trabalho?

Marinho: Ele ainda não decidiu essas questões. Não pedi para integrar o governo. Aceitei um convite e estou à disposição do presidente Lula. Estou satisfeito com o trabalho realizado nesse ano e meio à frente do Ministério do Trabalho. Quando assumi o ministério, comentei com alguns companheiros que se conseguisse consolidar uma política para o salário mínimo estaria satisfeito, com a missão cumprida. Mas o presidente, aparentemente, vai decidir isso junto com a eleição da Câmara.

Valor: As especulações sobre a formação do ministério incluem a chegada do senador eleito e ex-ministro do Trabalho, Francisco Dornelles (PP-RJ), para o seu cargo. Parece que o PP quer o Ministério do Trabalho. Segundo essa versão, o sr. seria deslocado para coordenar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).

Marinho: Duvido muito. Talvez seja o desejo de algumas pessoas, mas isso não existe. Não tem a mínima possibilidade a volta do ministro Dornelles. Descarto totalmente essa hipótese. Ele já passou pelo governo e já cumpriu sua missão. O presidente, se mudar, vai procurar uma novidade e não o passado.

Valor: No governo Lula, alguns ex-dirigentes sindicais tiveram seus nomes envolvidos em graves acusações. São os casos dos petistas Ricardo Berzoini, Luiz Gushiken, Delúbio Soares e Paulo Okamotto. A imagem dos sindicalistas ficou prejudicada?

Marinho: Isso não passa de preconceito. Gushiken deixou o sindicalismo nos anos 80. Berzoini foi eleito para o seu terceiro mandato consecutivo de deputado federal. Se alguém em algum dia tiver problema na vida é porque foi sindicalista? É preconceito puro e barato. Quando o Paulo Okamotto assumiu a presidência do Sebrae criticaram o fato de um sindicalista ganhar aquele salário. Nunca ouvi as pessoas questionarem a mulher do senador Albano Franco quando ela foi indicada para a presidência do Conselho do Sesi sem conhecer nada do assunto. Mas o Jair Meneguelli foi criticado pelo salário que recebe no mesmo cargo porque era sindicalista. Não questionam empresários que têm funções sindicais.

Valor: Esta avaliação que se faz do governo de sindicalistas foi reforçada com o desgaste do governo Lula nesses quatro anos?

Marinho: Isso sempre existiu e o presidente Lula é uma das maiores vítimas. Questionavam sua competência para governar porque ele não tem diploma universitário. Mas ninguém pode negar que ele é um estudioso e tem grande capacidade de assimilar conhecimento. É só ver sua evolução e sua experiência de vida. Esse preconceito contra os sindicalistas tem endereço certo e prejudica mais os representantes dos trabalhadores. Não ocorre o mesmo com os sindicalistas patronais. Os presidentes das confederações da indústria, do comércio e da agricultura também são sindicalistas e são equivalentes aos presidentes de centrais sindicais de trabalhadores. O Armando Monteiro Neto é um sindicalista empresarial. Representa a principal confederação empresarial, mas nunca é relacionado a sua função como sindicalista. É uma pessoa com papel importante na República, um deputado respeitado e presidente de uma confederação respeitadíssima. É um grande parceiro na interlocução com o governo e esse é o seu papel sindical. Mas nunca é chamado de sindicalista.

Valor: Qual é a sua opinião sobre as críticas segundo as quais o presidente Lula governa o país como se estivesse à frente de um sindicato? O governo só vê categorias profissionais? Quem não está representado por sindicatos não tem voz?

Marinho: O governo se relaciona com todos os setores da sociedade. Prova disso são os conselhos criados fora dessas estruturas sindicais. Há conselhos de Desenvolvimento Econômico e Social, o de Política Industrial e o de Segurança Alimentar. Todos os conselhos criados vão para a raiz da sociedade, desde as conferências municipais. Presidi o conselho de segurança alimentar na sua segunda instalação. O presidente Itamar Franco tinha criado essa estrutura, mas Fernando Henrique desmontou, assim como fez com muita coisa nos oito anos que ficou na Presidência. O conselho de saúde sobreviveu ao governo FHC e tem como ponto de partida as pessoas que usam o SUS nas cidades. Se a sociedade não for estimulada, nunca se organizará espontaneamente. O que o governo Lula faz é estimular essa organização para que a sociedade possa interagir com qualquer governo.

Valor: Isso não significa que quem não tem sindicato não tem voz?

Marinho: Se fosse assim, os sindicatos substituiriam os conselhos, o que não ocorre. Eles dão voz e criam espaço para quem não está organizado em sindicatos ou associações.

(Colaborou Cristiano Romero, de Brasília)